Consigo até imaginar o que muitos diriam se lessem hoje a entrevista que Eric Hobsbawm concedeu a Antonio Polito em 1999, jornalista que, à época, trabalhava no La Republica, jornal italiano. Estando em 2013 (a catorze anos, portanto, daquela data) podemos identificar minimamente aqueles pontos ou aspectos da realidade histórica presente em que o historiador britânico logrou acertos. Isso certamente desaguaria em diversas afirmações de que ele era uma espécie de profeta, ou de que ele conseguiu prever o futuro tal como ele veio a acontecer. Entre outras declarações do tipo.

Não quero, no entanto, me ater aos acertos de Hobsbawm – embora eles sejam, sim, de um apuro assombroso em vários aspectos –, mas na forma como ele veio a sedimentar modos de ver e interpretar o mundo a ponto de tornar-se capaz de apontar tendências, movimentos, transformações e permanências com tamanha propriedade.

Hobsbawm teve uma sólida carreira enquanto pesquisador e historiador do mundo contemporâneo. “Carreira” aqui talvez soe algo por demais burocrático e limitador, porque tendo o historiador nascido na aurora do “breve século XX”, ele foi, além de um estudioso do período, uma testemunha em primeira mão e um habitante desse complexo, aterrador e ainda assim fascinante século.

A ânsia em investigar e entender o mundo – esse ato tão essencialmente humano – se deu não somente por curiosidade acadêmica, mas por razões ontológicas. A história de Hobsbawm, e de seus pais e seus avós, estava entrelaçada com mudanças que vinham se delineando na história europeia e mesmo internacional naquele período, o que levava o historiador a perscrutar o século passado, e encaminhar-se, por conseguinte, ao anterior e assim por diante. Ou melhor, assim para trás, pois Hobsbawm foi retrocedendo até o século XVIII para compreender onde surgira aquele mundo no qual ele vivia.

O retrocesso ao século XVIII, tanto da Inglaterra quanto da Europa e do mundo, colocou Hobsbawm diante de problemas históricos cuja compreensão nos legou, entre outros, o já clássico A era das revoluções (1789-1848), no qual vemos as transformações profundas pelas quais passou o mundo na encruzilhada da decadência das aristocracias e do Antigo Regime com a ascensão de projetos sociais complexos, tais como a civilização burguesa e seus conflitos intestinos – foi ali que surgiram a esquerda e a direita. No marco do que se convencionou chamar de Idade Contemporânea (dentro da clássica divisão quadripartite), Hobsbawm vai enfeixando os canais de mudanças e as forças sociais que passaram a se digladiar em torno dos rumos daquela sociedade nascente, estabelecendo linhas explicativas e argumentos empíricos poderosos para dar corpo ao cenário histórico daquele tempo.

A partir do estudo do fim do XVIII e primeira metade do XIX, Hobsbawm foi capaz de vislumbrar, compreender e retratar as feições sociais, políticas, econômicas e culturais do que veio a chamar de A era do capital (1848-1875), isto é, a consolidação da civilização liberal-burguesa no período que sucede a era das revoluções. Combinando uma erudição fina e uma capacidade ímpar de falar com profundidade de uma conjuntura e um objeto tão amplos, Hobsbawm delineia os movimentos gerais da história do período para compreender, por conseguinte, a formação daquele mundo que ele chamou de A era dos impérios (1875-1914).

A gênese do imperialismo encontra-se retratada e analisada através da conjunção de diversos fatores tais como o desenvolvimento do capitalismo, a formação dos monopólios, a expansão militar sobre a Ásia, África e América Latina e o desenvolvimento de caracteres culturais que buscavam legitimar a submissão de outros povos e a “nobre” disseminação da civilização ocidental e liberal-burguesa. Hobsbawm coteja cada um desses fatores para quebrar com quaisquer possíveis sombras de univocidade, pois em se tratando de fenômenos humanos, todos esses processos estão marcados pela complexidade típica de toda a variedade da existência e “natureza” humanas.

O procedimento de investigação faz o texto de Hobsbawm ser abrangente e, ao mesmo tempo, profundo, fitando as estruturas para, logo em seguida, jogar-se num mergulho empírico cujo impacto acaba sendo também teórico. A abordagem a partir do materialismo histórico-dialético de Marx – opção filosófica e política inquebrantável do historiador, aliás – é enriquecida e reiterada em sua atualidade na medida em que Hobsbawm revitaliza-a enquanto instrumento analítico afiado apesar da sua forja estar ainda no século XIX. O corpus teórico que perpassa a abordagem dos livros do historiador é delimitado pelo olhar direcionado e atento para as forças sobre as quais Marx dissertou em suas obras, tais como a luta de classes, a investigação dos modos de produção e reprodução da vida como elementos fundamentais da análise historiográfica, além, é claro, das implicações filosóficas do trabalho enquanto ação material e ontológica que cria o mundo do homem.

Tudo isso orientou o olhar de Hobsbawm em sua empreitada, da mesma maneira que seu poder de síntese e sua rica cultura clássica humanista pontuam o texto. Ao olharmos para a obra Da revolução industrial ao imperialismo, por exemplo, encontramos um belo exemplo disso, pois o historiador, num recorte longo embora em texto breve, faz do processo histórico inglês um campo de investigações para outros processos históricos similares, marcados pela industrialização, pela consolidação do capitalismo e sua expansão internacional no último quartel do século XIX. O mesmo se dá quando das investigações cujo objeto encontra-se albergado nesse período e cujo resultado é o robusto Nações e nacionalismo desde 1780: o historiador revisita interpretações clássicas acerca do nacionalismo e busca entender tal fenômeno dentro do quadro maior de suas próprias investigações e de grande corpo empírico relativo ao tema.

1914 não é somente o ano que marca o fim da era dos Impérios, mas também o ano que abre A era dos extremos (1914-1991), o “breve século XX”. Este é, na minha opinião, um dos livros mais ousados de Hobsbawm, mas talvez o mais rico deles. Ousado por uma série de razões: proximidade temporal; crucialidade em relação a convicções pessoais, políticas e filosóficas do historiador; e acabrunhante profusão de eventos, fontes, visões e intrincados problemas – jazendo em aberto à época da escritura da obra. Rico por outra série de razões, mas em especial a proximidade visceral do sujeito histórico Hobsbawm em relação a tudo aquilo a que ele se propunha investigar.

É por conta de tudo isso – e percebam que sequer falei da vida política de Hobsbawm e de vários de outros ótimos livros seus (Ecos da marselhesa, Bandidos, Os trabalhadores, os ensaios de Sobre história e de Tempos fraturados, a monumental coleção História do marxismo, que ele organizou, entre diversos outros) – que acredito que aquela entrevista de O novo século deve ser observada não prospectivamente em relação a seu tempo (1999), mas retrospectivamente, considerando toda a longa e sólida caminhada do historiador até aquele ponto.

Historiografia não é futurologia, isso é tão óbvio quanto necessário reafirmar. Tal pressuposto, contudo, não pode nem deve impedir que o historiador volva seus olhos para o futuro enquanto extensão do presente, uma vez que o historiador sempre parte do presente, mesmo quando se volta ao passado para questioná-lo. O próprio Hobsbawm sintetiza o espírito que deve guiar, e acautelar, esse movimento: “(…) a previsão do futuro deve necessariamente basear-se no conhecimento do passado.” (p. 6)

Diante disso tudo, creio que aquilo dito na entrevista e transcrito para as páginas de O novo século passa a ter novo peso e novas e mais complexas dimensões.