Que o destino de todo o mundo é virar paçoca, a gente já sabe, ou ao menos eu sei. Apostas abertas para meteoro, tsunami, furacão, enchente, derretimento de calotas polares, aliens e buraco furado no céu. Há quem veja um anúncio da paçocada em arrastões da 25 de Março e na Miley Cyrus. Tem investidor construindo condomínio de luxo subterrâneo, com quadra, sauna e alimentação balanceada: todos os lotes vendidos no lançamento. Resignados podem comprar terreno no céu. O certo é que o mundo acaba com tudo no tacho. Mas não se sabe quando, nem o que determina se alguém vai sobreviver ou se vamos todos pagar de amendoim.

Não nego que tenho uma queda por essas histórias apocalípticas, que usam um fator aleatório para juntar pessoas que são tensamente diferentes, que dali em diante precisam conviver. É assim em The Mist, do Stephen King, quando uma pequena cidade é atingida por um nevoeiro maligno e um grupo de pessoas sobrevive em um supermercado. O mesmo acontece em Walking Dead. A graphic novel trata muito pouco dos perigos de ataques zumbis, que ficam para um segundo nível. A tensão principal está na divergência entre os sobreviventes e sua conduta com os mortos-vivos. De um lado, as personagens que aniquilam zumbis por acreditarem que eles são uma ameaça irreversível. De outro, aquelas que mantém parentes infectados em locais seguros e chegam até a acreditar em cura. Em uma escala mais soft e com câmeras de TV, temos Big Brother e A Fazenda, o apocalipse do subcelebridismo.

De qualquer forma, o mundo termina em paçoca. Estou com esse pensamento fixo durante uma viagem para o interior de Minas Gerais. Então só pode ser isso: nós, pessoas deste ônibus e somente, somos os únicos sobreviventes. Os únicos capazes de reconstruir tudo, mas ainda estamos processando essa informação. O motorista continua dirigindo enquanto árvores, carros, vacas, moitas e outdoors duvidosos com modelos sorridentes anunciando promoção outono-inverno 50% off começam a granular e condensar. Tudo que sobra  despaçocado é o caminho a frente e nós.

A primeira discussão é óbvia: continuar dirigindo (vai que a paçoca é uma intempérie local. Depois da serra tá tudo bem.) ou parar para encher o cu de comida? Democracia instaurada e, por 36 votos a 2, paramos. Dois céticos não acreditam em conservantes e por isso não comem. Mas espere que tem outro ponto: comer paçoca onde antes era pessoa é considerado canibalismo? 31 votos dizem que sim. Se tem forma de pessoa, não pode comer. Também não pode degustar ex-imagens cristãs, muito menos babar túmulos e morder livros sagrados, mesmo que eles grudem na mão e sejam despedaçados ao toque. É proibido consumir o patrimônio cultural da paçoca. Fazemos um estoque no ônibus, por garantia, e continuamos a viagem.

O estudante de direito de São João da Boa Vista começa a formular mais leis. Propõe que existe punição pra quem colocar pessoas-paçoca em posições sexuais constrangedoras, seja elas envolvendo outra pessoas-paçoca, objetos-paçoca ou animais-paçoca. O anarquista da banda de heavy metal de Poços de Caldas não gosta da ideia, mas acha perda de tempo se pronunciar. Dona Neide, cozinheira de Machado, lembra algo importante: diz que se realmente tudo virou paçoca, nós não deveríamos ter feito estoque de mais paçoca. Precisamos racionalizar todos os lanchinhos e pensar num jeito de variar as refeições. Ninguém conseguiria viver muito tempo com aquela dieta.

Fim da gasolina e tudo que nossas vistas alcançavam era paçoca. Temos que nos dividir entre três grupos: a) os que ficam na base, b) pequenos grupos exploradores e c) cavucadores, que encontram objetos no meio da paçoca. De tanto em tanto, há comida e souvenirs. No décimo primeiro dia, perdemos a primeira pessoa por intestino preso. No décimo segundo, percebemos que outra está perdendo peso e, depois de horas de interrogatório, descobrimos que ela odeia paçoca. Heresia! Foi excomungado.

Começamos a apurar nossos gostos e identificar diferenças na qualidade da paçoca. Logo, há divisões permanentes no grupo e quem quer acumular as melhores para si. A única produção dos sobreviventes, fora atividades mais básicas, é um livro de autoficção de um cara que tem certeza que vai fechar com uma grande editora, mesmo que elas não existam mais. Enquanto isso, vivemos sonhando com o dia em que encontraremos um lugar melhor, algo como a terra das lasanhas bolonhesas.