“Com uma história dessas, o sujeito é forçado a virar um gênio. Ou isso, ou ele acaba rindo. Trancado num quarto de paredes espessamente estofadas pelo Estado.”

É assim, na introdução de A lanterna mágica, que Woody Allen define seu diretor preferido, aquele que em Manhattan ele afirmaria ser “o único gênio vivo”.

Ingmar Bergman é, indiscutivelmente, um gênio e um marco da história do cinema. Ao mostrar Hariett Andersson olhando diretamente para a câmera, em Monika e o desejo, ele influencia uma geração inteira e põe em movimento a Nouvelle Vague; O cavaleiro de O sétimo selo, jogando xadrez com a Morte por sua vida, é uma imagem que já foi apropriada até mesmo por um episódio de Animaniacs; seus closes muito próximos, os rostos imensos e assombrados em tela tornaram-se um recurso universal dos filmes que buscam mergulhar na alma de seus personagens, aparecendo, só em 2013, em Frances Ha e Azul é a cor mais quente.

Mas sua singularidade como autor não está apenas nas formas inéditas com que manipulou a linguagem do cinema. Bergman soube como ninguém mergulhar na humanidade de seus personagens, pintar, como disse Allen nessa mesma introdução, uma “paisagem da alma”. Em Imagens, um livro em que analisa sua filmografia, Bergman afirma que alguns de seus trabalhos tocaram em “segredos sem palavras, que apenas o cinema pode revelar”.

Em A lanterna mágica, sua autobiografia escrita quando o diretor já tinha 70 anos e havia se recolhido na ilha de Faro, onde viveu relativamente isolado até sua morte em 2009, Bergman faz consigo mesmo o que por anos fez com seus personagens. O livro é muito menos o relato de sua vida do que um passeio por sua alma, aquilo que o formou como artista, as imagens que dominariam sua obsessão, sua dificuldade e extrema sensibilidade para com o mundo ao seu redor.

Escrito de forma não linear, A lanterna mágica alterna entre cenas da infância, a paróquia da família em Uppsala, as férias de verão no interior, o pai pastor, a mãe distante, as avós, as babás, os primeiros amores, e da vida do Bergman já artista, suas muitas mulheres, a forma como entrou na indústria do cinema, as diversas montagens do teatro.

Em algumas entrevistas, Bergman afirmou que o teatro era a arte de seu coração, embora reconhecesse que fosse um diretor de teatro apenas medíocre, e são suas experiências no palco das quais ele mais fala aqui. Os filmes são mencionados, sobretudo a importância das filmagens de Morangos silvestres ao lado de Victor Sjöström e do envolvimento com Liv Ullmann no set de Persona, mas as montagens teatrais são descritas em detalhe, com todo o processo criativo exposto.

Faz sentido, faz um enorme sentido, para um artista que sempre acreditou no teatro como metáfora para a vida. Na cena inicial de Fanny e Alexander, seu filme final, pensado como uma despedida e uma conclusão, vemos o protagonista brincando com um teatro de marionetes sobre o qual se lê “não apenas pelo prazer”. Essa é a história de um homem que não acredita na arte como entretenimento, embora seja um belo contador de histórias, mas na arte como microcosmos e metáfora da existência.

E no palco de A lanterna mágica vemos passar mulheres, colaboradores, atores, atrizes, artistas, diretores, mãe, pai, irmãos… Mas único verdadeiro personagem é o autor, que joga sobre si mesmo um olhar perturbadoramente sincero, que não busca disfarçar suas dificuldades de temperamento, a forma como negligenciou mulher e filhos, o flerte com o nazismo na adolescência, a incapacidade de lidar com equipes de filmagem em seus primeiros anos. À luz de sua própria análise, vemos um homem dominado por seus demônios, possuído por uma intensidade indomável a ponto de manifestar-se fisicamente.

Bergman era, ao contrário do que possa parecer, um homem extremamente físico. Um “animal sexual”, como ele mesmo define, e propenso a refletir no corpo o turbilhão de suas emoções: são frequentes os relatos de vômitos, diarreias e dores de estômago. O que aparece nessa autobiografia é um homem que extravasa e que sem qualquer pudor nos oferece uma entrada nos cantos escondidos de sua personalidade. Acontece que esse homem é um gênio.

Quando um filme não é documentário, ele é sonho. Por isso, Tarkovski é o maior de todos,  pois se move, sem dúvida, no espaço do sonho; não explica, o que explicaria, afinal de contas? Ele é um sonhador que conseguiu pôr em cena suas visões, no mais pesado mas também mais dúctil de todos os meios.

 

É preciso, nesse ponto, discordar de Ingmar Bergman. Não é Tarkovski, mas ele mesmo, o maior de todos. O artista capaz de exercer toda a possibilidade da imagem em movimento, explorar toda a dimensão humana que o cinema pode tocar. Mas ele está certo ao dizer que o cinema é sonho, o cinema existe na esfera que escapa a palavra e é grandioso justamente quando fala ao inconsciente, ao obscuro, a parcela de nós mesmos que não podemos acessar, mas que Bergman exibiu sem concessões na tela.

A lanterna mágica nos oferece uma imagem da mente capaz de tudo isso. Dos sonhos e visões daquele que construiu os mais belos, e aterrorizantes, sonhos cinematográficos. A própria prosa do autor flui como um sonho, indo e voltando, se guiando pelo fio da memória de uma forma quase proustiana, às vezes agrupando anedotas por tema: fracassos teatrais, amigos que morreram, colaboração com grandes influências. São tocantes e doídas as passagens em que ele reconta sua experiência com Sjöström e Ingrid Bergman já idosos, perto da morte.

Sobre o início da adolescência, ele que a essa altura já queremos chamar de Ingmar diz: “os cinemas e o lugar na terceira fila do balcão lateral do Dramaten eram meus únicos refúgios”. É o relato de uma vida vivida , não para o teatro e o cinema, mas dentro deles. Bergman pode não ser tão bom escritor quando é cineasta, mas é extremamente generoso ao nos oferecer sua face humana em um livro peculiar e complexo como o próprio homem.