Um dos desafios da crítica cinematográfica é discorrer sobre um filme sem revelar muito de seu enredo, o que estragaria surpresas que devem ser vistas, e não lidas. Crítica não é análise de discurso, nem aula sobre Cinema, mas apontamentos e reflexões acerca de uma obra, incentivando a ida a um filme bom ou alertando das bombas em cartaz. Portanto, num filme sutil como Alabama Monroe, de Felix Van Groeningen, as decisões a serem tomadas durante a escrita tornam-se um desafio ainda maior, e o crítico então se vê na angústia, à certa medida excitante, de caminhar por um trajeto estreito, tendo que dosar as palavras, tal qual um chef dosa os temperos de sua receita. Eis aqui minha tentativa:

Didier (Jonah Heldenbergh) é o líder de um grupo de bluegrass – ritmo de influência country estadunidenses, que privilegia os instrumentos de sopro – e idolatra os EUA, “lugar onde todos são sonhadores”, em suas palavras. Com sua barba e cabelos desgrenhados, porém estilosos, conquista a tatuadora Elise (Veerle Baetens), com quem se casa. Eles têm uma filha, Maybelle (a encantadora Nell Cattrysse), reformam o rancho que Didier herdou e vivem uma vida idílica, embalada por música boa e bons amigos no pacato interior da Bélgica. Mas a vida lhes bate à porta, cobrando seu preço. Como diz Elise em determinado momento, ninguém pode ser tão feliz. A vida não é assim.

Alabama Monroe é um filme de amor e música, de dor e música, de vida e morte e música e muito, muito mais. Um filme onde existe sutileza do roteiro e das interpretações para construir dramas críveis que arrastam o espectador para o turbilhão da vida ou, nas palavras do diretor1: a uma “montanha russa emocional”.

Não há dúvidas de que assistir ao filme é uma experiência emocional, e sair da sala ileso pode ser sinal de que algo está errado com sua Máquina-de-Gerar-Sentimentos. Seja na primeira noite do casal, enquanto ainda namorados, sob uma coberta vermelha que reflete em seus rostos, ou quando marido e mulher acompanham a filha, há algo na história desses três que te faz torcer para que tudo fique bem.

O ambiente é rústico, clima que transpira da tela e se faz sentir na pele do espectador. A trama banal – nada mais do que acontecimentos da vida de qualquer um – é rebuscada pelo artifício da cronologia entrecortada, com idas e vindas e intercalações que podem irritar os espectadores fãs de edições mais cartesianas.

À certa altura, Didier tem de explicar a Maybelle porque as criaturas morrem – quando a menina vê um pássaro batendo no vidro da “terranda” (mistura de terraço com varanda que Didier construiu em frente à casa). Nesse momento abre-se espaço para a discussão sobre espiritualidade, uma das propostas do filme. É errado e tolo crer no místico, na vida após a morte? Ou é um conforto válido para os que passam pelo desafio da vida?

Acompanhamos esse debate através dos contrastantes pontos de vista do casal, hora concordando com a opinião de um (quando Didier critica o embuste às pesquisas com células-tronco), hora entendendo a necessidade mística dos desolados (como nos momentos mais tristes de Elise). No final, é inegável que o roteiro (escrito pelo protagonista, autor da versão original para o teatro) toma partido de um desses pontos de vista, ficando a cargo do espectador viajar pela crença ou criticar o misticismo.

Verdadeiramente arrebatador e comovente, Alabama Monroe ainda fica um tom abaixo do charme e excessos de A Grande Beleza, de Paolo Sorentinno, e da visceralidade de A Caça, de Tomas Vinterberg. Os três disputam o Oscar de Melhor Estrangeiro como favoritos, mas é pouco provável que o prêmio fique com o filme belga, apesar das referências diretas aos EUA (o que sempre agrada a Academia).

Ainda assim, trata-se de um filme que merece o ingresso e não o esquecimento, seja por suas saborosas cenas musicais, pela sensualidade de sua protagonista tatuada, pelo jeitão atabalhoado do protagonista (uma versão cowboy-belga de Jeff Bridges novo) ou pela ácida mensagem de que a vida, no fim das contas, não é de graça.

  1. André Miranda, no Globo Online de 18/01/14