Dias atrás, viu-se com certa apreensão e alegria ao mesmo tempo a primeira ocorrência de um beijo entre dois homens em uma telenovela brasileira, no último episódio de Amor à vida, transmitida pela Rede Globo. Basicamente isso. Com certeza, boa parte da população nacional já deve ter se deparado com dois homens se beijando na rua ou até mesmo na televisão. Ao mesmo tempo, no mesmo mês, pelo menos três ataques nas ruas de São Paulo a jovens homossexuais, dois resultando mortes violentas, acontecem e não parecem sensibilizar a mídia nem o povo do mesmo jeito. Aqueles que se colocam diante da sociedade ao se beijar recebem dela uma rasteira. Na televisão, a história parece diferente.

A princípio não quero discutir tanto se o “beijo gay” da Rede Globo foi realmente o primeiro beijo. Aparentemente, ele já aconteceu antes, em 1990, em uma série da extinta Rede Manchete. Apesar de a lembrança ser importante, assim como aquela de que já houve um beijo entre duas mulheres, na telenovela Amor e revolução, do SBT, em 2011, pareceu mais relevante para a maioria das pessoas o acontecimento mais recente, o do “beijo gay” da Rede Globo. Um beijo de lado, no último momento, que por alguns motivos impressionou todos. Só nos resta entender todos os lados desse beijo para além daquele transmitido em cadeia nacional.

Ele se deu entre um vilão redimido (Félix), que se tornou personagem querida do telespectador ao longo da trama, e um galã jovem (Niko), sob a forma de uma personagem que não parava de chorar, claramente muito sensível. Ambos brancos e ricos, que terminam a novela na forma de família, no sentido tradicional, da tradição perpetuada pela burguesia dominante. Eles têm filhos (de um dos homens), vivem juntos em uma mesma habitação e, inclusive, já estabeleceram uma dinâmica de convivência, até mesmo com a devida empregada doméstica, resquício escravocrata do nosso país. Eles também não fogem dos estereótipos postos pelo senso comum para o homem gay (Félix como “bicha má” e Niko como “sensível”).

Os dois não são nada diferentes do homossexual criticado nos filmes de Rainer Werner Fassbinder, como O direito do mais forte à liberdade (1975). No filme, o que se vê é a relação entre um homem marginalizado socialmente (Franz Biberkopf, como o protagonista de Berlin Alexanderplatz), que seguia um circo e ganhava um pouco de dinheiro aqui e acolá, e outro homem cujo passado é praticamente aristocrata (Eugen Thiess), vindo de uma família abastada, com clara visão de mundo pertencente às classes mais altas. A relação se dá de maneira conflituosa dada as diferenças entre os dois, obviamente relativas às classes sociais de cada um. O interesse de Eugen surge exclusivamente no momento em que Franz ganha na loteria. O dinheiro é a força motriz de sua afetividade, algo que assim que Franz percebe o leva a desistir do relacionamento. Apesar do encantamento do amor entre os dois, que se assemelha ao casamento, logo se percebe que se trata de uma relação desnivelada, em que só há liberdade para “o mais forte”, no caso, Eugen.

Fassbinder, assim como outros de sua época, percebia que a aparente união do movimento homossexual não se daria sem a consciência de que havia algo maior, mais estrutural por trás: as classes sociais. No caso de Amor à vida, as personagens do beijo eram ricos e brancos. E mais: os dois eram homens. Trata-se a tríade da “liberdade” da sociedade brasileira, o conjunto de elementos que permitem que você usufrua melhor da vida social do que outros. Nota-se, ainda, que Félix reforça a todo tempo essa tríade ao tratar mal outras pessoas por serem mais pobres ou por serem mulheres (como no caso de sua ex-esposa). Não existe, então, qualquer ruptura para além do fato de os dois não se definirem mais como heterossexuais. Essa pretensa revolução se dá apenas pelo fato de que os dois pertencem à classe dominante da cultura brasileira.

Ainda assim, diz-se que o “beijo gay” estabeleceu certa discussão nos lares daqueles que assistiram ao último episódio da novela. Também houve, é claro, a reação dos defensores da moral e dos bons costumes. O debate certamente começou, porém duvido que não vá além da simples aceitação do homossexual dentro das normas heterossexuais se se mantiver a discussão nesses termos. Aí mora o perigo. Guy Hocquenghem, escritor e militante francês, já avisava em A contestação homossexual (1977) que o gay mudará a sociedade se se situar como marginal e incentivar a quebra das normas. Perpetuá-las apenas reforçará a repressão daqueles que nelas não se encaixam.

Apenas aqueles como Eugen, Félix e Niko serão aceitos a princípio, por desejarem um casamento e por terem dinheiro estável. Marginais como Franz Biberkopf e todos aqueles agredidos diariamente nas ruas de São Paulo e de todas as outras cidades brasileiras continuam sem seu “beijo gay”. Às mulheres, ainda, como aquelas que se beijaram em Amor e revolução, restará apenas o registro histórico, afinal continuarão a ser reprimidas pela sociedade, inclusive por homossexuais machistas como Félix. Elas só se beijarão na rua porque agradam ao fetiche do homem heterossexual, porque estão expressando aquela sensibilidade que se espera do ser do sexo feminino. Para todos esses, o beijo ainda será seguido de uma rasteira.

Ps.: A foto acima é da série “Arthur Rimbaud in New York” (1978-1979), do americano David Wojnarowicz (1954-1992).