por Stefano Calgaro

 

Sermões: a história de Antônio Vieira. O filme foi feito à maneira de Júlio Bressane, gravando filmes em pouquíssimos dias: este foi idealizado em 12/13 anos, mas gravado em 11/13 dias. E olha que conta no elenco Othon Bastos, José Lewgoy, Haroldo de Campos, Caetano Veloso, Paulo César Saraceni e mais algumas personalidades. Melhor ator (para Basthos) e melhor direção no festival de Brasília de 89.

Em Sermões, a história de Vieira, é a história do Brasil colonial seiscentista, que por sua vez se torna a história do Barroco brasileiro, pulando, através de suas metáforas visuais, do Brasil seiscentista ao Brasil do século XX. Ensaio poético sobre a vida de Antônio Vieira, que não será apenas constituído dos elementos comuns entre o cinema marginal e a estética barroca dentro do audiovisual. Mas o que está sujeito a ensaio é a junção entre o barroquismo cinematográfico e a herança barroca proveniente de Antônio Vieira, do barroco como escola estética (embora o termo encontre seus problemas); teremos Haroldo de Campos (vestido do que parece ser de jesuíta) lendo a proesia que inicia galáxias com um acompanhamento de cítara de Alberto Marsicano; teremos a persona angelical tupiniquim de Caetano Veloso cantando o poema de Gregório de Mattos, Triste Bahia; suas composições visuais; e o que muito me surpreendeu, tocar no assunto sobre a crítica feita por Sor Juana Inês de la Cruz a um sermão de Antônio Vieira, que mais tarde foi custar a ela uma disputa teológica, gerando as famosas carta Atenagórica e a respuesta a Sor Filotea de la Cruz – cuja primeira frase sua, de Juana, proferida no filme, vem desta carta:  y dice muy bien el Fénix Lusitano (pero ¿cuándo no dice bien, aun cuando no dice bien?) ; e o resto de sua fala é um poema seu, Procura desmentir los elogios que a un retrato de la poetiza inscribió la verdad, que llama pasión).

No começo é de se confundir (aos mal avisados ou mal acostumados) o marginalismo maneirista de Bressane com puro “amadorismo” e “baixo orçamento”, no qual na verdade o quem não pode fazer nada, avacalha (máxima de O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla) se mistura com formalismo e vigor estético. O cinema Marginal (ou quem o ainda possui nos quadris) é onde mais claro vemos a estética e a linguagem mediando-se pela técnica e seus recursos.

O que ele faz é uma leitura barroca visual em cima dos sermões de Antônio Viera, intercalando suas filmagens com trechos de filmes como Cidadão Kane, A paixão de Joana D’arc e Ouro e Maldição.

Aqui vemos o embate entre a tradição (império) com a improvisação (colônia), tanto de forma política quanto através das relações culturais, sociais e artísticas.

A exposição desse cinema de invenção e improviso, quando faz angulações de câmeras e as coloca em movimentos tortuosos, ou quando pega filmes B de monstros ou filmes de guerra da década de 30 e 40 e os monta (ou melhor, bricola?) num filme sobre, ou em função de, seus sermões – seguindo também um pouco da tradição barroca enquanto escola e teoria formal (tanto textual quanto visual): composições anguladas, ornamentos e os excessos (tanto dentro de um quadro quanto a falta de respiro na montagem, sem pausas para seus simbolismos), a emoção na composição indexada aos excessos e excessos de figuras de linguagem. Ou seja, a linguagem cinematográfica barroca junto aos maneirismos, ornamentos, a prosa, sermão, poesia, escultura, pintura, arquitetura em excessos como, e em alguns casos, até quase imitando os ornamentos dourados das igrejas (tortuosidades refletidas em movimentos de câmera) e as composições com certa diagonalidade, muito presente em pintores barrocos chave, que pareceram encaixar muito bem com o marginal(ismo) de Bressane.

As figuras de linguagem (dentre seus paradoxos, antíteses, perífrases e metáforas), seu hermetismo, se concretizam em imagem. Não somente ensaia, mas experimenta, como quando coloca a boca de Orson Welles sussurrando (originalmente) Rosebud, mas escutamos Antônio Vieira. O que Bressane permite é a história de Antônio Vieira com alguns trechos da história do cinema e um pouco da história do barroco no campo agora da imagem em movimento, ou melhor, apenas a história que se mistura na memória. Mas atento, não o faz, com o intuito de historicizar estes campos. Ao mesmo tempo em que a história do barroco nos lembra da tortuosidade em Caravaggio, em El Greco, há as tortuosidades em Welles, em Dreyer.

Chegando ao nível de intercalar o mar tão explorado nos sermões com a explosão de uma bomba atômica enquanto recita o sermão do bom ladrão, ou referenciando “Deus e o Diabo na terra do sol”, quando, após o insert de um filme antigo onde se lê “Eldorado”, começa a Bachiana nº 5 de Villa Lobos e intercalam-se imagens de lampião (do filme de Benjamim Abraão, Lampião, o Rei do cangaço) com Antônio Vieira girando de braços abertos feito Corisco, o diabo loiro (aliás, papel representado pelo mesmo ator). Ou seja, não somente busca em seu repertório de imagens, figuras de linguagem com um simbolismo tão grande quanto o de Vieira, mas que também se articulem com o presente, ou melhor, seu passado recente, coisas para dissertar sobre o Brasil colonial de Vieira e o que dele se foi sucedendo (até o cangaço, por exemplo).

Caetano, por exemplo, evoca um lirismo místico baiano barroco de Gregório de Mattos, e temos com ele um exemplo de um plano sintetizador de símbolos: em um plano, a cor de sua pele, a música cantada, o figurino e o cenário que nos dão símbolos e suas conexões, coisa de que os prolixismos e figuras de linguagem (tanto dentro de um plano quanto na montagem, isto é, na sucessão de planos e suas relações) se farão, e irão condizer em um gesto formal com o barroco formal. Diferente de colocar alguém muito parecido (tanto fisionomicamente quanto nas vestes) com Gregório de Mattos apenas recitando Triste Bahia.

Se o filme começa com a morte de Vieira e em seguida temos Haroldo recitando no fim do fim recomeça o recomeço refina o refino do fim e onde fina começa e se apressa e regressa e retece há milumestórias na mínima unha de estória, ele acaba com Viera fazendo um sermão (ou conversando, embora toda hora em que apareça no filme, esteja pregando) a outro Padre dizendo “muita paciência, José. Eu virei buscá-lo para juntos darmos uma última caminhada pelo céu, para sempre. E com este para sempre me quero despedir, e que este para sempre nos fique soando nos ouvidos, imprimindo-se na memória, para sempre. Para sempre. Para sempre. Para sempre.” Começa Sor Juana (com um trecho de sua carta (respuesta), “y dice muy bien el Fénix Lusitano (pero ¿cuándo no dice bien, aun cuando no dice bien?)” e recitando seu poema (primeiro em Espanhol e depois em Português)

 

Éste que ves, engaño colorido,
que, del arte ostentando los primores,
con falsos silogismos de colores
es cauteloso engaño del sentido;

éste en quien la lisonja ha pretendido
excusar de los años los horrores
y venciendo del tiempo los rigores
triunfar de la vejez y del olvido:

es un vano artificio del cuidado;
es una flor al viento delicada;
es un resguardo inútil para el hado;

es una necia diligencia errada;
es un afán caduco, y, bien mirado,
es cadáver, es polvo, es sombra, es nada.

 

E eis que após ela recitar, Vieira se confronta com o seu silêncio e sua morte.

E é nesse miolo de tratar a história de Antônio Vieira junto à (de certa forma) história do barroco brasileiro que se felicita. (Re)Citando:

“Em A sátira e o engenho, obra na qual discorre sobre a poesia de Gregório de Matos, Hansen (2004) demonstra que conceitos modernos de autoria individualizada, originalidade, novidade estética e plágio não eram conhecidos pelos artistas de então, e sua utilização nas análises de tais obras é fruto de releituras e reinterpretações posteriores que buscaram unificar as produções.”1

 

Dito isso, também para dizer que a questão de autor empaca aqui: como o filme teve a “Orientação Poética” de Haroldo de Campos, contribuição com pesquisa e com o roteiro de Vamireh Chacon e Rosa Maria Dias (que colaborou com Bressane em outros roteiros como o de Cleópatra e Dias de Nietzsche em Turim) e à medida que vamos nos aprofundando nos simbolismos e nos acontecimentos do filme, fica difícil, a um primeiro momento (sem saber a trilha destes), saber o que teve o dedo de Haroldo ou de Bressane ou de Vamireh Chacon ou Rosa Maria Dias. Mas aí também acerta em seu barroco.

Processo de fusões culturais e colagens cinematográficas, a história de Antônio Vieira é o Barroco seiscentista contada com já uma concepção de Brasil pós-semana-de-22, de Oswald, pós-cinema-novo, pós-concretistas e só assim esse filme pode – ou pôde – ser concebido.

E finda-se em uma unha da história com mil e uma estórias.

 

  1. PEREZ, Pedro Vaz. Glauber e o Barroco: Cinema da resistência e contraconquista, p 268, Revista rumores.