Um livro que se chama Livro: esse é o romance de José Luís Peixoto lançado em 2010 em Portugal. Muitas hipóteses podem ser feitas pelo leitor acerca do título. Poderia ser um romance sobre a história do livro, ou ainda um romance cuja trama se desenvolve com base em um livro. Pessoalmente, lembrei de filmes como A história sem fim (1984), de Wolfgang Petersen, clássico da Sessão da Tarde. De certa maneira, todas essas hipóteses são válidas para se entender a obra de Peixoto. Livro dialoga com muito do nosso imaginário acerca desse objeto que é, ao mesmo tempo, um produto cultural.

Talvez o leitor não habituado com a história portuguesa do século XX se confunda um pouco com a trama do Livro. Como muitas obras literárias, certamente esse romance ganha novas camadas de compreensão se houver conhecimento do contexto histórico existente no enredo. Nesse caso, alguma informação sobre a ditadura salazarista, o Estado Novo português (1933-1974), situa melhor a leitura do romance, que deixa claro por marcações cronológicas que se pretende que a associação com o período histórico aconteça.

O primeiro ano registrado do Livro é 1948, justamente na primeira página de sua primeira parte, o que nos leva para um período em que o regime de António Salazar já se encontrava consolidado após as atribulações da Segunda Guerra Mundial. O famoso slogan de seu governo, “orgulhosamente sós”, cabe muito bem para se descrever o cenário rural precário e isolado em que as personagens do romance habitam. Uma vila rústica, de pensamento quase medieval, com toda uma mística própria, é o espaço do romance – o que nos remete à obra de Lídia Jorge, O dia dos prodígios (1979). Apesar da ambientação, é criada uma estranheza: a primeira ação do enredo, dada na primeira frase, não condiz com a condição social esperada do local: “A mãe pousou o livro nas mãos do filho.”

É claro que uma pessoa não deveria saber desse contexto sócio-histórico antes do resto da leitura, assim não poderia ter esse mesmo pensamento que tive. O que acontece, porém, é que a maioria das pessoas lê a contracapa do livro (objeto), então também talvez forme a mesma ideia. De qualquer modo, ao longo do romance, percebe-se essa contradição. Não se trata de um problema. O objetivo do romance nunca é ser precisamente igual à realidade. Acredito que ele nem poderia sê-lo. Livro, apesar de nos situar em pontos conhecidos da História, continua a ser uma obra ficcional que parte de um conhecimento comum para daí criar, inventar algo. Fica para nós o mistério de suas intenções, assim como ficou a incógnita sobre o ato da entrega do livro para Ilídio, a criança que recebe o objeto-livro das mãos de sua progenitora.

Nessa parte I do Livro de Peixoto, que é na verdade quase todo o romance, acompanha-se o desenvolvimento não exatamente de um enredo no sentido clássico, cuja cronologia está adequada ao nosso calendário. Ela tem um sentido próprio, ainda que se utilize da marcação por anos. Os anos citados, acredito eu, só servem para dar noção do contexto ao qual se referem e, logo depois, ressituá-lo dentro da lógica da obra literária. Aos poucos, o leitor que – assim como este que vos escreve – tentar seguir uma cronologia se verá perdido no Livro.

Os anos da obra se misturam com os anos históricos sem que se definam entre um ou outro. Talvez nem o leitor possa fazer essa escolha. O que se nota na verdade é que os anos, especialmente na primeira parte do romance, realmente não passam no sentido em que esperamos. Não há um real evolução. As intrigas não se dão a fim de estabelecer novos paradigmas para análise de uma relação entre personagens ou para alteração do espaço. Os dramas são os mesmos apesar dos acontecimentos. Diria que isso dialoga com a noção de isolamento que podemos projetar sobre a vila, esse local “absolutamente só”, destacado do mundo, mas não pelo orgulho nacional de Salazar, mas pelas condições econômicas e culturais criadas por seu governo.

O leitor atento ao uso do objeto-livro ao longo da obra também observará que, ao contrário do que se pode esperar, não se relata sua leitura, ao menos a leitura que fazemos quando abrimos um livro. O livro aparece inicialmente como objeto na obra de Peixoto. Como disse, não poderia se esperar que um livro em uma vila de pessoas mal instruídas fosse realmente lido como aqueles que foram instigados a ler o fazem. O livro se torna, assim como qualquer coisa desconhecida em um local místico, um mistério, uma fonte de adoração ou temor.

Ao redor daquele que recebe o livro, Ilídio, surgem aos poucos outras personagens no romance, como Josué, a velha Lubélia, o Cosme, Galopim, Aquele da Sorna e outros ainda que aparecem conforme o local do romance se transfere. Em certo momento, com a decadência econômica na qual Portugal cai sob o poder de Salazar, torna-se inevitável a ideia da fuga. A França, no caso, Paris, atraiu à época migrantes portugueses que procuram essa Europa da qual há tempos não se sentiam próximos. É claro que o choque cultural foi enorme, especialmente para as personagens do Livro. Sentimos bem esse choque.

Uma outra característica do romance do Peixoto é a estrutura de sua narração, que, assim como em James Joyce, se aproxima muito de suas personagens. Não se sente em momento algum que um narrador permanece, ao modo do romance romântico do século XIX, como conhecedor de tudo e de todos. A ausência de marcas tradicionais de diálogo, como o travessão, também colabora para que haja a combinação entre os discursos.

Na segunda parte do Livro, bem menor do que a anterior, altera-se a estrutura. A perspectiva é de uma só personagem nova, chamada Livro (veja você), espécie de herdeiro cultural da migração da vila para a metrópole francesa. Dessa vez, nos encontramos em um período pós-salazarista, em que a personagem vê a necessidade do retorno às origens. Fica claro esse contexto pelo final da primeira parte, em que a marcação do tempo acaba justamente em 1974, com cinco dias específicos, de 23 a 27 de abril, sendo que a ditadura salazarista acaba com a Revolução de 25 de Abril, ocorrida em 1974.

Livro (personagem) volta a Portugal, mas a vila não é a mesma. Não diria que devido à queda do ditador. A narração nessa segunda parte, dessa vez em primeiro pessoa, nos dá outra visão que na narração anterior não tivemos da vila. Livro é um homem de letras, educado em escola francesa, leitor dos principais autores da modernidade e amante de várias mulheres. O livro para ele é um produto cultural, porém o livro vindo de sua vila ainda permanece misterioso, assim como a vila. Assim, pode-se dizer que Livro, em sua interação de tempos, lida com realidades diferentes que parecem querer se encontrar sob os mesmos questionamentos sobre o mundo.