No intuito de lembrar os 50 anos do golpe militar (lembrar para que não nos esqueçamos), selecionei algumas obras de literatura que podem servir como porta de entrada para compreender diferentes aspectos, situações e eventos referentes não só ao golpe em si, mas à realidade histórica que ele instaurou. Apesar disso, o critério é o pessoal, já que os livros aqui listados não compartilham entre si senão alguns pontos de intersecção, que variam de obra a obra e de escritor a escritor. Desde livros que tratam de histórias aparentemente específicas em sua individualidade (como Um copo de cólera) até livros que tratam abertamente dos eventos políticos (como O ato e o fato), de livros de ficção até crônica jornalística, a seleção se justifica no pequeno texto que acompanha cada indicação.

Diante da vastidão de obras publicadas nesse período e sobre esse tema, tomei a decisão sincera de falar somente daquelas que li, tendo deixado, portanto, obras que podem ser tidas como “mais expressivas”. É o caso, por exemplo, de Quarup, de Antonio Callado, tida como uma das grandes obras da literatura brasileira (do período e atemporalmente falando), mas que não figura aqui pelo simples motivo, confessado, de que não consegui lê-la desde o momento em que me propus a organizar essa seleção.

Espero que aproveitem para conhecer obras ou escritores dos quais não tivessem ouvido falar, e que possam contribuir com mais indicações de leitura na seção de comentários. À lista, pois:

Um.dia.na.vida.de.Brasilino.Paulo.Guilherme.MartinsUm dia na vida de Brasilino (Paulo Guilherme Martins) – O livro surgiu como uma espécie de folheto produzido com boas doses de ironia para fomentar a consciência acerca da ampla presença de empresas estrangeiras atuando na órbita econômica brasileira. A toada do livro é cadenciada pela repetição de uma certa frase que aparece sempre que Brasilino, o protagonista, usa algum produto de uma empresa multinacional, como no seguinte caso: ao escovar os dentes, Brasilino usa a pasta dental Kolynos, “assim, para escovar os dentes, Brasilino paga dividendos para o capital estrangeiro.” É evidente que a preocupação de Paulo Guilherme Martins não repousa sobre os efeitos estéticos de sua prosa, mas sim na demonstração da presença massiva de capital estrangeiro em nossa economia, presença essa que se evidenciava nos menores atos do cotidiano. Conhecendo, pois, a dimensão econômica fundamental do golpe, se trata de um livro com profundo sentido político e histórico.

O.ato.e.o.fato.Carlos.Heitor.ConyO ato e o fato – Crônicas políticas (Carlos Heitor Cony) – Cony é amplamente conhecido pela sua obra literária, mas foi colunista do jornal Correio da Manhã justamente à época do golpe de 1964. Com sua verve crítica e seu vasto arsenal de metáforas, referências e recursos literários, portanto, foi que ele audaciosamente escreveu sobre o famigerado golpe e seus desdobramentos posteriores. Irônico e cáustico, ele dispara comentários nada lisonjeiros ao que ele chamou de “a revolução dos caranguejos”, já que, segundo ele, andava para trás. Uma ótima opção para quem quer ler algo escrito no calor do momento, do olho do furacão.

64.d.c.64 d.c. (Antonio Callado, Carlos Heitor Cony, Hermano Alves, Marques Rebelo e Sergio Porto) – Uma coletânea de contos lançada também à sombra da ascensão dos militares ao poder e que traz histórias simples mas nem por isso menos engraçadas e significativas. Nesse livro encontramos desde um coronel que quer militarizar seu condomínio como se fosse a política nacional, até um computador programado para julgar as pessoas e livrar os militares do ônus da arbitrariedade. Tudo isso orquestrado por um time de peso que não se isolou na literária torre de marfim em que muitos almejam depositar a literatura.

Lili.Passeata.Guido.GuerraLili Passeata (Guido Guerra) – Apesar de uma vasta obra literária, que extrapola a temática da ditadura militar, Guido Guerra não é um dos escritores brasileiros mais conhecidos. O que é uma pena. Em vários de seus livros encontramos as marcas de um engajamento interessante por parte do escritor na denúncia do regime militar (As aparições do Dr. Salu e outras histórias, e Quatro estrelas no pijama, por exemplo), engajamento esse que tentou encontrar o tom narrativo e até mesmo estético mais propício para não cair nem num polemismo estéril nem numa “contação de histórias” pura e simples. Lili Passeata é evidência disso: Guerra junta diversas vozes e fontes (documentais, inclusive) para construir um personagem compósito daquela juventude que efervesceu politicamente no pré e no pós-64. O bricolage não tipifica demais nem essencializa a personalidade como um objetivo em si, criando uma personagem de grande valor simbólico para entender a textura existencial daquela geração.

1968.O.ano.que.nao.terminou.Zuenir.Ventura1968 – O ano que não terminou (Zuenir Ventura) – Ventura se tornou uma das vozes jornalísticas mais conhecidas com relação à reconstrução dos eventos pós-64, e fez isso através de uma crônica jornalística com fôlego documental digno de respeito. Embora certas leituras que faz a respeito dos grupos de esquerda, da atuação dos presidentes e da política econômica, por exemplo, careçam de um apuro interpretativo mais rigoroso, Ventura consegue captar bem a densidade atmosférica daqueles tempos, como a influência da contracultura, os movimentos feministas, o movimento estudantil, os acontecimentos-chave da política, enfim, a avalanche de ideias que veio a moldar a mentalidade daquela geração.

(Amanhã sai a segunda parte com mais indicações de leitura.)