Lançado em Janeiro de 2013 na China, O Grande Mestre só chega hoje ao Brasil, uma decisão um tanto incompreensível ao considerar que o filme foi indicado a dois Oscars. Mais incompreensível ainda foi o corte internacional comandado por Harvey Weinstein – preocupado com uma suposta ignorância do público ocidental sobre os assuntos retratados, Weinstein exigiu uma reformulação que envolveu a remoção de 10 minutos da montagem original.

A decisão causou certa revolta entre críticos e cinéfilos hardcore, mas eu desconfio que a maioria deles não chegou a assistir às duas versões antes de declarar heresia. Tendo visto a versão original de 130 minutos, não imagino como o Weinstein possa ter piorado muito um filme no mínimo um tanto bagunçado, pelo menos para este espectador ocidental. Ainda não comparei as duas versões, mas estou curioso para ver a internacional, que alguns críticos até disseram preferir.

O Grande Mestre narra a vida de Ip Man (Tony Leung), o lendário mestre de kung-fu que eventualmente treinaria Bruce Lee. Apesar da história já ter sido contada no cinema e na TV, a existência de uma versão dirigida por Wong Kar-wai era o suficiente para deixar bastante gente salivando. Em termos visuais, Wong é sem dúvida um dos diretores mais virtuosos das últimas décadas, ao ponto em que o crítico novaiorquino Mike D’Angelo chegou a dedicar um artigo inteiro a um único plano de Amores Expressos.

É um momento mágico em que Wong cria uma atmosfera surreal através de uma combinação de técnicas, a principal sendo o processo de câmera lenta “artificial” chamado step-editing, cuja explicação é entediante demais pra eu descrever aqui (digamos que alguns frames são removidos e outros duplicados). Não se trata de um efeito novo ou particularmente associado a filmes “de arte,” tendo aparecido até em O Império ContraAtaca, mas se tornou a marca registrada do diretor, sendo utilizado de forma superlativa em seu magnum opus Amor à Flor da Pele.

É necessário levantar esse ponto porque, apesar de geralmente empregada para pontuar momentos importantes, a técnica é usada de forma tão incessante nos primeiros 40 minutos de O Grande Mestre que chega a ser estapafúrdio. Parece que o Wong estava tão preocupado com a possibilidade de o filme parecer impessoal que sentiu a necessidade de carimbar a obra com seu selo autoral da forma mais óbvia possível. Eventualmente, o efeito começa a ser utilizado com frequência mais esparsa, mas é aí que os problemas narrativos começam a surgir.

O primeiro obstáculo da história é a necessidade de se ater à História. Wong alcança momentos interessantes através da utilização de imagens de arquivo durante o trecho que documenta a invasão japonesa nos anos 30, mas não consegue evitar a frequente sensação de que estamos riscando itens de uma lista, comum em filmes-biografia. Claramente constringido por um respeito aos fatos, o filme acaba realmente parecendo impessoal, raramente alcançando o lirismo das melhores obras do diretor.

Antes de prosseguirmos, um pouco de contexto: Ip Man foi o maior popularizador do Wing Chun, um estilo sulista de kung-fu desenvolvido como uma forma de defesa pessoal a ser usada por qualquer tipo de pessoa, independente de tamanho, força ou sexo, caracterizado pela eficiência e pela ausência de movimentos acrobáticos. A rivalidade entre o norte e o sul da China, o teste dessas tensões durante a invasão japonesa e a filosofia por trás dos diferentes estilos são conceitos bastante explorados na primeira metade do filme.

Lá em cima eu disse que O Grande Mestre conta a história de Ip Man. Isso é uma verdade incompleta. Na segunda metade, Ip praticamente some do filme, que passa a se concentrar na vida de Gong Er (Zhang Ziyi), filha de um mestre do norte, que cria uma rivalidade amigável com Ip após seu pai declará-lo seu representante no sul. Isso não é exatamente um problema; a jornada de Gong Er é até mais tradicionalmente “divertida,” envolvendo um forte dilema pessoal causado pelo velho conceito do devo-vingar-meu-mestre presente em 87% dos filmes de artes marciais existentes. Ip Man, por sua vez, é representado basicamente como infalível, e seus únicos obstáculos são de uma variedade que ele não pode socar (guerra é o inferno etc).

Essa divisão radical de ponto de vista é por um lado tematicamente interessante, já que os dois protagonistas podem ser interpretados como representantes de formas diferentes de encarar as artes marciais (ela é ativa e emocional, ele é passivo e estratégico), mas torna o filme meio sem foco, como se indeciso sobre qual história quer contar. A presença de personagens periféricos em subtramas que não levam a lugar nenhum, como um ativista chamado “O Navalha” (Chang Chen), só agrava esse problema.

Tendo registrado essas objeções, ainda sinto que devo recomendar assistir a esse filme no cinema. A fotografia é obviamente fantástica, e as lutas coreografadas pelo onipresente Yuen Woo-ping, apesar de não trazerem nada de novo, são competentes como sempre. Wong filma com mais close-ups do que o habitual para um filme de kung-fu, gerando um imediatismo empolgante em combates frequentemente emoldurados por forças da natureza como chuva e neve.

É um filme onde um plano-detalhe de fios de cabelo sendo queimados é tão importante quanto chutes na cara, mas não sofre de uma falta de chutes na cara. Um set-piece em particular, passado em uma estação de trem, é tudo que se pode querer de um filme de artes marciais dirigido por Wong Kar-wai. E ocasionalmente, sobretudo no trecho onde Ip Man e Gong Er se correspondem à distância, é possível ver indícios do filme que ele realmente queria fazer.

Cotação: *** de *****