Numumba, Nolom, Kinemara e Gulungo são quatro adolescentes que vivem em um lugar inspirado na África, em uma época em que o mundo ainda era cheio de criaturas fantásticas e magia. A vida deles não é nada simples, como as provações que estão vindo pela frente vão lhes mostrar.

Numumba e Nolom, dois amigos de uma aldeia aos pés da Munda Central, são enxotados a toda hora pela comunidade. Numumba é filho do soldado mais fraco, seu trabalho é levar comida para os outros soldados, e gasta o resto do tempo sonhando ser um herói que destrói criaturas malignas que assombram a região. Nolom é escravo de um senhor gordo e sonolento, que tem a audácia de desejar ser, um dia, um grande contador de histórias e sábio. Kinemara é uma princesa, a mais mirrada e amedrontada da linhagem Kalumba, filhas da Primeira Mulher, e está temerosa com o seu futuro, em que terá de lutar contra suas próprias irmãs. E Gulungo é um escravo da cidade de Kinemara, um garoto que à princípio não deveria nem ter nome, quanto mais ser notado pelos outros – ou pela princesa.

É na vida desses quatro jovens na transição da adolescência para a vida adulta que Fábio Kabral se debruça em Ritos de passagem, primeiro livro de uma série que explora a cultura e as lendas da África para contar a história de crescimento e luta daqueles que vivem nas periferias da vida. Além de Kinemara, que cresceu até então em uma casa rica e cheia de mordomias, os outros rapazes só conhecem a miséria, financeira, social e existencial. Xingados e enxotados de onde é que estejam, eles alimentam junto com os sonhos a raiva contra aqueles que os subjugam.

Fábio Kabral não poupa monólogos irritadiços e indignados para deixar claro quem são e como vivem suas personagens. Nolom, Gulungo e Numumba são adolescentes que nasceram para o fracasso, que não se destacam em nada e são pisoteados por seus superiores e pelos seus iguais. Mesmo assim eles sonham, têm ambições de viver um futuro menos miserável, de serem reconhecidos por grandes feitos que estão por vir. Feitos que, por enquanto, existem apenas na imaginação.

Neste primeiro livro, Kabral concentra a narrativa na apresentação de seus quatro protagonistas e detalha ao leitor a situação em que eles vivem e que tipo de humilhação sofrem. Para simpatizar com as dores das personagens, a narrativa alterna entre a primeira e terceira pessoa – conforme a intensidade da raiva dos garotos e da garota aumenta, mas o que eles pensam invade a história, a voz deles se colocando acima da do narrador.

Raiva é a palavra que une esses jovens. Eles estão insatisfeitos não só com a condição em que vivem, mas com toda a dinâmica do mundo. Eles sentem ódio da injustiça, das pessoas que abusam de seus recursos, da ignorância do povo que concorda em ser tratado como lixo, e sentem raiva deles mesmos, por serem fracos ou alimentarem também seus preconceitos e ignorâncias. Essa raiva transborda pelo livro como, por exemplo, quando Kabral utiliza várias páginas para repetir as palavras “odeio” e “morram”, em uma explosão de fúria de Nolom – e impulsiona as personagens a agirem.

Apesar da história se passar em outro continente e em outros tempos, tão distantes do que vivenciamos, os problemas e anseios dessa juventude é comum a nossos dias: como sobreviver a uma existência medíocre, como não ser levado pelo fluxo das desventuras e ter força para lutar pelo melhor? É possível reconhecer em Numumba, Gulungo, Nolom e Kinemara semelhanças com qualquer jovem que tenha nascido sem nenhuma perspectiva de melhorar a vida, já destinado a perder, tentando entrar na vida adulta com alguma dignidade.

Apesar de ser um livro que pende mais para a fantasia, os maiores monstros que eles têm de enfrentar são humanos. “Porque, para mim, monstros são todas as pessoas que fazem muito mal às outras”, diz Kinemara em certo ponto do livro. Eles são os homens que escravizam, agridem e matam os mais fracos, os que não permitem que seus iguais vivam decentemente. Ou, como no caso de Gulungo, o monstro mora dentro dele mesmo. Todos guardam dentro de si algum poder antigo que, uma hora ou outra, vai eclodir.

Kabral trabalha vários dramas dentro de um só mundo, e em Ritos de passagem cria a base de onde os problemas vão atingir seus protagonistas e obrigá-los a lutar, um livro muito mais psicológico neste início do que aventuresco. E que promete ser na continuação tão intenso quanto o ódio de suas personagens, quando descobrem que existem forças maiores dentro delas, maiores que suas insatisfações e sonhos.