É incrível perceber como o poeta austro-húngaro Rainer Maria Rilke (1875-1926), apesar de ter nascido em Praga e ser falante de língua alemã assim como Franz Kafka, demonstra a variedade cultural na qual estava inserido por ser tão distinto literariamente de seu conterrâneo. Em relação aos temas presentes em sua literatura, talvez não tanto. O autor das Cartas a um jovem poeta é conhecido pela transcendentalidade do mundo em seus poemas e por sua compreensão religiosa da morte.

De início ligado ao lirismo do século XIX, bem como ao simbolismo francês, mais tardiamente, em sua maturidade artística, parece se aproximar de uma estética expressionista. Elegias de Duíno (1923), obra que iniciou no Castelo de Duíno, em Trieste, e levou mais de 10 anos para terminar devido a uma depressão, é uma boa expressão da evolução poética do poeta.

As Elegias, de fato, foram um marco para uma série de escritores, não somente aqueles de língua alemã. No ensaio “Todos os Santos, Finados”, de O labirinto da solidão (1950), livro do mexicano Octavio Paz sobre a condição psicológica e moral de seus compatriotas, vê-se Rilke como referência:

 

Nos versos da oitava das Elegias de Duíno, Rilke diz que a criança – o ser em sua inocência animal – contempla o aberto, ao contrário de nós [mexicanos], que jamais olhamos mais à frente, na direção do absoluto. O medo nos faz virar o rosto, dar as costas para a morte. E quando nos negamos a vê-la, também nos fechamos fatalmente para a vida, que é uma totalidade que a traz em si.1

 

De fato, a noção de abertura já está presente desde o primeiro verso da oitava elegia, cuja tradução que cito é de Dora Ferreira da Silva, relançada pela Editora Globo, em 2013, pelo selo “Biblioteca Azul”:

 

Com todos os seus olhos, a criatura vê o Aberto.

Nosso olhar, porém, foi revertido e como armadilha

se oculta em torno do livre caminho.

O que está além, pressentimos apenas

na expressão do animal; pois desde a infância

desviamos o olhar para trás e o espaço livre perdemos,

ah, esse espaço profundo que há na face do animal.

Isento de morte. Nós só vemos

morte. O animal espontâneo ultrapassou seu fim;

diante de si tem apenas Deus e quando se move

é para a eternidade, como correm as fontes.

(…)

 

Junto do comentário de Paz, associando o aberto da criança ao fechado do mexicano, podemos ainda notar a constância da referência à noção de liberdade nesses primeiros versos. O “livre caminho” estaria, aparentemente, disponível apenas para a “criatura”, que “pressentimos apenas na [sua] expressão animal”. Além do tom rousseauniano desse “animal” em sua liberdade ingênua, podemos entender que, como adultos, desviamos desse caminho de isenção da morte, portanto, imortal e eterno, que apenas vê Deus, mesma direção das fontes, da natureza. O ser humano seria, assim, destinado à clausura da vida que teme a morte.

No entendimento de Octavio Paz, os mexicanos, por exemplo, pela conquista cristã, estão nessa mesma prisão de um tempo linear que não para de correr em direção à morte, ao desconhecido, ao fim da vida como se conhece. Esse é o destino do homem, ainda que, versos adiante, na última estrofe, o eu-lírico da oitava elegia se pergunte “quem nos desviou assim, para que tivéssemos um ar de despedida em tudo que fazemos?” A consciência da vida para levar inevitavelmente à morte.

Pouco antes no livro de Rilke, começamos a ler a primeira elegia por estes versos:

 

Quem, se eu gritasse, entre as legiões de Anjos

me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse

inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia

sua existência demasiado forte. Pois que é o Belo

senão o grau do Terrível que ainda suportamos

e que admiramos porque, impassível, desdenha

destruir-nos? Todo Anjo é terrível.

E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo

do meu soluço obscuro. (…)

 

Novamente, o homem parece isolado, abandonado por si mesmo, longe da eternidade dos anjos e sob a constante ameaça de sua aniquilação pelos mesmos. Ainda assim, admira esses mesmos anjos por seu poder de destruição. O Belo de Rilke, nesse sentido, não se distancia nem um pouco do Sublime romântico, decadentista, que se alcança somente pela morte, bem como pela arte, outro aspecto da obra do poeta de Praga. É importante também aqui ressaltar como, sim, a religiosidade da formação do poeta se volta contra si no período depressivo no Castelo de Duíno.

A tradutora das Elegias de Duíno, Dora Ferreira da Silva, pelos comentários aos poemas, disponíveis em apêndice da edição da Globo, faz questão de destacar como a primeira elegia desse livro, bem como a oitava elegia, se diferenciam de outras do ciclo pelo seu distanciamento de Deus, pela sensação de abandono. Ainda assim, persiste a noção do aberto, sob a admiração do celestial aberto em contraposição ao fechado e restrito terreno. Ainda na primeira elegia, na última estrofe, diz-se que:

 

Os mortos precoces não precisam de nós, eles

que se desabituam do terrestre, docemente,

como de suave seio maternal. Mas nós,

ávidos de grandes mistérios, nós que tantas vezes

só através da dor atingimos a feliz transformação, sem eles

poderíamos ser? (…)

 

A presença da morte no plano terreno daqueles que dele se “desabituam”, que deixam de habitar ao perder a noção da terra, dá um estranho sentido, nada racional, para a existência dos outros. Trata-se da ideia comum de que valorizamos a vida diante da morte do outro. Seguimos a vida, “ávidos de grandes mistérios”, apesar da dor de viver. Só podemos “ser” através da morte. Nesse sentido, as crianças da oitava elegia nunca poderiam realmente ser na Terra, pois, em sua inocência, nunca buscariam os mistérios, muito menos resolvê-los.

Rilke, muitas vezes citado quase como autoajuda, parece ser em suas Elegias consciente da condição humana, procurando, pela sua formação cristã, negar a salvação pela Igreja e buscar na arte e na beleza um meio de ser aprovado pelos anjos e liberto da morte, como dito na décima elegia, a final do livro. A leitura dos poemas é, de fato, difícil. Percebo que, ainda que não esteja imerso na cristandade como o autor, vejo que, para um ocidental, é por demais difícil não se ver como um ser assim desamparado. Cada um de nós procura uma forma de redenção, seja individual ou coletiva. Nas Elegias de Duíno, sentimos como, do terreno, da vida fechada em si, procuramos a morte sem saber nunca o que esperar dela.

 

  1. PAZ, Octavio. O labirinto da solidão. Trad. de Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 61.