Há poucos meses, perguntei: você gosta de poesia?

Na coluna em questão, escrevi sobre como “2013 foi um ano atípico na poesia” e listei todas as obras do gênero que li no período: dez. Acho que nunca tinha lido tantos em um mesmo ano; até em 2005, quando devorei quase todos os livros do Arnaldo Antunes disponíveis na biblioteca pública, não devo ter chegado a sete livros. O resumo da ópera: foi uma boa experiência de quebra de preconceitos.

O plano inicial era revisitar o tema apenas em 2015, citando todas as obras lidas neste ano. No entanto, surgiu um pequeno problema: o meio do ano ainda não chegou e, entre lidas e relidas, já passei de 20. Como proceder?

Decidi, então, sentar e começar a escrever. Não sobre todas as vinte e tantas de uma vez porque, convenhamos, eu não teria paciência para escrever um texto tão grande nem você teria para lê-lo. As escolhidas dessa leva, por exemplo, se destacam por – como posso explicar? – serem diferentonas.

Ainda que “diferentona” não seja uma classificação corrente em críticas literárias.

Vamos a elas.

 

marcos_bassini3Senhorita K – Marcos Bassini (editora Patuá)

O livro chegou de surpresa: eu não tinha pedido e ninguém me avisou de sua remessa. Primeira impressão? “Ai, mais uma dessas obras premiadas com publicação…”: ela venceu o concurso “Edith – Só Para Poetas”, com direito a lançamento na Balada Literária. Não que os títulos que recebam tais prêmios sejam sempre decepcionantes – Quiçá (de Luisa Geisler) e Sérgio Y. vai à América (de Alexandre Vidal Porto) não me deixam mentir – mas, em geral, a sensação que tenho é: não foi escolha, mas falta de opção. Não devia admitir, mas evito obras do gênero sempre que possível.

O que teria sido uma imensa besteira, posto que me apaixonei pela Senhorita K.

O livro é dividido em cinco partes. Três delas (“Senhorita K”, “A volta da Senhorita K” e “O fim da Senhorita K”) estabelecem uma espécie de narrativa da personagem que dá título ao livro, com fragmentos de sua vida, pensamentos, opiniões. Nelas, se sente a experiência do autor como roteirista, algo interessante para quem, como eu, não lê poesia pausadamente, mas em ritmo de prosa. Nas outras duas (“Pedra polida é bruta bem lascada” e “Boca do estômago mordendo o soco”), que separam as anteriores, o poeta se deixa de lado a personagem e se dá uma maior liberdade temática e de experimentação – o que dá uma espécie de respiro às seções mais narrativas, tal como entreatos, tornando o livro ainda mais “devorável”.

O que há de inusitado: Notas de rodapé, algo que nunca tinha visto em poemas (a não ser no caso de notas de tradutor/editor). Nelas, há outros versos, estrofes inteiras em cada marcação. Você não sabe se lê cada nota separadamente ou se lê primeiro o poema principal e depois o poema formado pelas notas; em ambos os casos, o resultado costuma surpreender.

Abaixo, um poema que, apesar de não ser meu favorito no livro, foi transcrito pela seguinte razão: sua nota de rodapé “1” acidentalmente não foi impressa; perguntei, então, ao escritor o que dizia o original e ele me respondeu; repasso, por fim, a informação para quem já tem ou pretende comprar a obra.

SENHORITA K SE RECUPERA

durante um certo tempo
Senhorita K, não importa para onde olhasse1
com quem falasse
via sempre um recém-nascido2

a mesa parecia um bebê de costas achatadas
com um pequeno bebê-cinzeiro em cima
e um porta-copos que nada mais era que
um bebê de boca aberta

o bebezão-garçom que trazia a comida dentro de
uma placenta-sacola
agradecia a gorjeta: unhé!

isso, graças a deus, não durou muito
logo Senhorita K estava curada
tricotando um gorrinho para sua torradeira

em segunda pesso

Em segunda pessoa – Aline Zouvi (editora Medita)

Se você já leu minha resenha para Fingidores, de Rodrigo Rosp, conhece a expressão “furador de fila”. Se não leu, saiba: furadores de fila costumam ser aqueles livros bem fininhos que a gente pega pra ler numa sentada enquanto deveria estar lendo aquele romanção grosso que dura mais de mês. Assim que vi o exemplar de Em segunda pessoa que me foi enviado pela autora, vi que era um furador de fila por excelência: além de ter apenas 82 páginas, era um livro de poesia3.

Apesar de, num primeiro momento, sentir que haveria algo de adolescente nos poemas4, creio que a poeta conseguiu rapidamente fugir do estereótipo e alcançar o diálogo-poesia prometido na orelha do livro 5. O eu-lírico passeia à vontade entre gêneros (difícil definir quando é homem ou mulher), temas e estilos, aqui e ali fazendo um aceno a uma grande escritora ou a um pintor clássico.

Não é exatamente um feel-good book – aliás, ele parece ir na direção contrária à do conceito, expondo inseguranças comuns e aquela solidão corriqueira a todos nós –, mas o fato é que me senti bem em ter sido escolhido para ler esse livro.

O que há de inusitado: Além das ilustrações de Juliana Veloso que dialogam com a poesia de Zouvi, a segunda parte do livro (“II – suspensos”) é escrita em prosa, como se os textos fossem minicontos. Prosa poética? Não gosto muito do termo. A poeta classificou como poesia? Então é poesia, pô.

terminar um livro e nunca mais voltar a abri-lo
é despedir-me de alguém
com aquele bicho no estômago
aquela vontade de imaginar
– nas ruas, nas tabacarias,
nos fundos dos espelhos –
podem ser, meu deus,
elas podem ser
aquela que, sem lutar
deixei ir

quadras

Quadras Paulistanas – Fabrício Corsaletti & Andrés Sandoval (Companhia das Letras)

O livro chega chama atenção na livraria: todo amarelo e com um pedaço faltando no canto superior direito.

Nele, estão reunidas as colunas de Fabrício Corsaletti para a revista sãopaulo, crônicas sobre o cotidiano na cidade de São Paulo, escritas em heptassílabos toantes. Sim, em versos. Rimadinhos e tudo.

Lê-lo é agradável como dar um passeio pela cidade6. Com um repentista do lado, que transforma instantâneos da realidade em algo tão gostosinho de ler quanto cordel. E o passeio é bem abrangente: vai dos locais mais elitizados aos mais pobrinhos; fala de muitos anônimos, mas também cita Laerte Coutinho.

Não basta ler: como toda boa crônica, o livro é gostoso reler de vez em quando. Aliás, não deixe de ler a entrevista de Daniel Falkemback com o poeta.

O que há de inusitado: Primeiro, o nome grandão do ilustrador na capa, que indica a importância da arte de Andrés Sandoval para o projeto do livro. Da mesma forma que Corsaletti faz a crônica da cidade em versos, Sandoval o faz em ilustrações. Lá pelas tantas, entendemos a razão de “faltar um pedaço” do livro: o corte se assemelha à forma das calçadas em algumas das esquinas retratadas no livro. Taí um artista cujos trabalhos vale a pena acompanhar: não é a primeira vez que me surpreendo com o moço.

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(clique para aumentar a imagem)

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Eu me chamo Antônio – Pedro Gabriel (Intrínseca)

Há alguns meses, a editora Intrínseca pela primeira vez lançou (1.) uma obra de um estreante escrita originalmente em português, (2.) um livro de poesia e (3.) um livro de arte original 7. E tem sido um sucesso enorme.

Logicamente, ajuda que (1.) a página dele no Facebook tenha um número invejável de curtidas e que (2.) Pedro Gabriel seja fofinho e (3.) simpático – algo recorrente nos comentários a respeito dele em sua turnê pelo Brasil.

Os versos do autor são, em geral, trocadilhos que subvertem frases e ditados de amplo conhecimento do público e dão a estes novo fôlego. Um primeiro passo para muitas pessoas no terreno da poesia.

O que há de inusitado: Os poemas são desenhados em guardanapos, Leminski-style. Isso mesmo, desenhados: grande parte do apelo do livro está na tipologia usada: o que parece antes ser uma letra é, na verdade, outra – e está pronto o trocadilho. O projeto gráfico, com fotografias e texturas emoldurando os guardanapos, torna o visual da obra bastante atraente.

antonio

*

as coisas

As coisas; Nome – Arnaldo Antunes (Iluminuras; BMG)

Meu histórico com Arnaldo Antunes é antigo. Basta dizer que uma das coisas que possibilitaram que eu me sentisse à vontade em Curitiba, assim que me mudei para cá, foi a presença de muitos de seus livros na biblioteca pública. Enquanto ainda não tinha amigos por aqui, saía por aí acompanhado de 40 escritos Psia, entre outros.

Sem querer, neste ano esbarrei em dois de seus livros que ainda não tinha lido.

O que há de inusitado (As coisas): O livro é totalmente ilustrado por Rosa Moreau Antunes, filha do poeta. O que não poderia ser mais interessante: os poemas do livro definem as coisas como se elas não fossem óbvias e assim traz aos olhos aquilo em que nem prestamos atenção. Mais ou menos como fazemos ao ver o desenho de uma criança: ela fala que ali tem uma baleia, então prestamos atenção até vermos a baleia. As coisas não têm paz.

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O que há de inusitado (Nome): Essa é uma obra que não faz muito sentido pegar na biblioteca – ao menos, se ela só oferece o livro para empréstimo. O projeto de Nome incluía também um home vídeo8 – o livro seria apenas o roteiro deste. Ainda bem que hoje temos acesso fácil ao YouTube: o canal do próprio Arnaldo Antunes possui uma playlist com 20 dos 30 videopoemas da obra; os outros são facilmente encontrados no mesmo canal pesquisando-se por “DVD Nome, 1993”9.

Pra quem nunca teve a oportunidade de ver uma exposição do autor, com quadros, fotografias e vídeos, a experiência está à distância de um clique. Tem algo melhor que isso?

*

Por hoje, é só. Até o próximo post da série!

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  1. os olhos são influenciados pela memória
  2. Inclusive o amor à primeira vista / não está imune à dor / do próprio parto
  3. Lembrando sempre que não sou desses que costumam ficar meia hora lendo o mesmo poema. Nada contra. Só não sou.
  4. Sempre me lembro de quando uma amiga mostrou um caderno cheio de versos sobre aquela ânsia, aquela vontade de se expressar, de gritar para o mundo que… o quê mesmo? É a isso que chamo de “algo de adolescente”. Já fico com um pé atrás.
  5. Aliás, parabéns ao orelhador: depois da leitura, vi que as palavras não eram propaganda enganosa.
  6. Desde que você goste de São Paulo. E de passeios. Caso contrário, não.
  7. Tenho quase certeza de que foi isso o que foi dito na turnê da editora.
  8. Em 2006, a obra foi remasterizada e lançada em dvd.
  9. Um dos melhores que não aparecem entre os 20 é “Tato”