O cidadão sobe a rua Cardoso de Almeida por volta da uma da manhã. A ladeira, como quaisquer outras em Perdizes, parece sem fim e mais declive. A rua Dr. Homem de Melo fica para trás, a Turiassú ou Turiaçu – as placas adoram pregar peças nos pedestres e motoristas quanto a ortografia correta do logradouro ora mão dupla, ora mão única – está ainda mais longe da vista, perdida na imensidão da noite.

O cidadão opta por caminhar perto do meio fio a ter de encarar as diferentes nivelações da calçada – o esforço é bem maior, fique ciente. Conquanto, uma fileira de cones listrados com as cores laranja e branca, uma sinalização da empresa de Gás ou uma nova obra do metrô (hahahaha), fará o cidadão escolher entre transitar fora do meio fio e mais para o meio da rua ou enfrentar as mal fadadas calçadas da zona Oeste. 

Um estridente som, baixo e longínquo, toma a sua atenção. Parece uma sirene, mas impossível de identificar se do resgate do Corpo de Bombeiros, do SAMU, da Polícia Militar, da Rota (apesar deles só ligarem as malditas quando querem aparecer na televisão mostrando seus talentosos motoristas, se não há câmeras circulam a 5 km/h com os cotovelos para fora mostrando quem é que manda no pedaço), da Polícia Civil ou se uma buzina personalizada vinda do Vila Country logo ali na Matarazzo.

“IUIUIU-UUUUUhhh-Uhhhh-huuuuuuuul”

O cidadão avista um Gol – talvez um Golf, ou Voyage, ou algum Hyundai (nenhum deles patrocinou esse relato) – preto em velocidade um pouco acima da média permitida após a uma e poucas-garrafas-de-cerveja da manhã. A fúria urbana. Meio jovem cidadão, postado pela janela do carona, emitia aquele som estridente, abria os braços pronto para um abraço. O cidadão, o nosso, não reconhece a figura e estranha o gesto afetuoso como se ele, o nosso cidadão, fosse autor do gol no último minuto do segundo tempo a salvar o time da degola. O meio jovem cidadão estica mais os braços e agarra com a força de um Sansão, mas aparado no Jacques Janine, aquela forma cônica laranja e branca postada na rua, com outros coirmãos executando um trabalho honesto, abrangente entre o alerta de uma obra e uma fila indiana harmônica. Adeus meio jovem e cone.

Dia após dia (noite, na verdade) essas histórias se repetem pelas capitais, interiores e litorais do Brasil. Os cones vítimas de sequestro nunca voltam aos armazéns de onde saíram. Jovens, por volta de seus dezoito a vinte e quatro anos, são os responsáveis por essas tragédias. Embriagados, em sua maioria, tomam o cone e o levam embora. O perfil dos feitores não se limita à classe média-alta-média.

Relatos de testemunhas dizem que não são apenas os cones de rua que sofrem esse abuso; os das lojas Pão de Açúcar, estacionamentos privados, faculdades e outros estabelecimentos também são levados para longe. Como se abduzidos. Seguranças nunca estão presentes no momento. Resgates nunca são requeridos e nenhum contato é feito.

A.P. participou de diversas atividades envolvendo sequestros e encarceramento de cones, contudo não sabe explicar as razões que a fizeram agir de tal forma. “Na maioria das vezes eu estava bêbada, no dia seguinte acordava e o cone não estava mais com a gente.”, ela afirma, deixando escapar, “Várias vezes a gente acordava e nem lembrava de cone, nem de nada”.

Grandes estudiosos do fenômeno de desaparecimento de cones tentaram entender a atração entre jovens embriagados e cones. Jules Florencio dividiu seus estudos sobre cronópios e fama para entender os cones, os quais afirmou serem fiéis aliados nas situações adversas do cotidiano citadino. Há apenas um registro fotográfico de seus experimentos e todos os relatórios são tidos como “fantasias febris de um pobre louco argentino”.

Jules Florencio
Jules Florencio durante um de seus experimentos

Teorias da conspiração, como da pesquisadora D.P., 27 anos, buscam evidências de que a suposta inerência desses seres cônicos é, de fato, um golpe dos mesmos. “Eles querem ser levados”, afirma D.P. sobre as supostas vítimas. Um plano orquestrado inicialmente por cones aurinegros – poucos ainda são vistos pelas ruas – é de espalhar sua população nas mais diferentes residências. Comunicam-se por ruídos inaudíveis para seres humanos, golfinhos ou tartarugas marinhas. Bodes originários da Cordilheira de Zagros compreende de 5 a 10 desses ruídos.

Há rumores de uma seita logo ali, perto da Cardoso de Almeida, onde estudantes da Faculdade Santa Marcelina veneram as figuras cônicas com cânticos. “Me dá um cone, me dá um cone que eu fico laranja”, entonam em uníssono enquanto vestem réplicas de pelúcia do seu totem.

É um mistério a vida secreta dos cones para grande parte da população. Todos estão sujeitos a cair em tentação ao verem a forma sólida ali, como quem não quer nada, guardando o meio fio. Enfileirados ou solitários estão prontos a serem levados, talvez essa seja a sua missão, talvez essa seja a nossa. Talvez esse seja um daqueles pequenos testes governamentais para estudar a influência da bebida alcoólica em decisões estúpidas, daquelas bem humanas.

Quanto ao cidadão na rua Cardoso de Almeida, agora quase às duas da manhã, ele dá de ombros para o carro, para o meio jovem cidadão e continua a sua caminhada até a Av. Dr. Arnaldo se perguntando “Por que diabos não tem ônibus 24 horas?”.