A ficção científica e a fantasia abominam o dinheiro. Pelo menos a falta de recursos nunca parece ser um impeditivo para nada. É tudo muito simples em questões financeiras: se vai viajar no tempo, não esqueça de enterrar umas barras de ouro (em um lugar que não tenha sofrido grandes transformações urbanizadoras ou geológicas, claro); se já estiver no futuro, mais fácil ainda, risque alguns créditos e acerte tudo quando a nave voltar à Terra (computando juros relativísticos, provavelmente você já ficou milionário mesmo).

Na fantasia não é muito diferente. Frodo e a Sociedade atravessam todo o caminho para Mordor: em algum momento precisam de dinheiro? Não. O que importa nesses cenários é a nobreza, o poder mágico ou a linhagem mística. A cobiça de tesouros, pelo contrário, costuma ser um caminho certo para a ruína.

É curioso que a busca por dinheiro seja algo tão raro na ficção especulativa, quando nossas vidas se moldam tanto por isso. Pensando bem, talvez a característica marcante do “nosso mundo” seja justamente o dinheiro. Em algum mundo fantástico, alguém deve se divertir lendo as incríveis histórias das pessoas que trabalham em torno de recompensa financeira.

É bom pensar que um pouquinho desse futuro chega à medida que vemos bons portais de literatura especulativa disponibilizando gratuitamente suas publicações aos leitores. Não é algo tão recente: já em 2000 uma novela postada no site Sci Fiction conseguiu levar o Prêmio Nebula.

Claro que existem outros mecanismos econômicos por trás dessa gratuidade, afinal, os escritores continuam sendo pagos. No caso do Sci Fiction, tratava-se de um portal mantido pelo canal a cabo americano Scifi (hoje Syfy)1. Era uma troca de material cultural por visibilidade, algo semelhante ao que acontece hoje com a editora Tor e seu site. Semelhante também ao Facebook e o Twitter.

Mas existem outras possibilidades. O mecanismo mais comum para as revistas de ficção científica e fantasia talvez seja o de cobrar apenas por serviços adicionais. A Clarkesworld e a Lightspeed, por exemplo, duas das mais conceituadas hoje, disponibilizam quase todo o seu acervo online, mas os textos, que já estão disponíveis para assinantes no primeiro dia do mês, só são liberados aos poucos nos sites. Outros sites vivem simplesmente de doações. É o santificado modelo do Wikipedia, repetido por exemplo pelo Strange Horizons.

Pode parecer utopia desejar que as coisas sejam oferecidas gratuitamente, mas mesmo a literatura mainstream traz evidências de que o nível geral de conforto e independência financeira têm aumentado. Hoje é raro encontrar personagens pobres como os de Dickens ou Dostoievksi, ou daqueles que precisam contar o dinheiro dia a dia, como em Os ratos, de Dyonélio Machado. Os personagens de agora, como na ficção especulativa, parecem se preocupar cada vez menos com dinheiro. Não custa acreditar que isso um dia será realidade para todos.

Mas vamos às indicações de contos, novelas e artigos de junho.

Originais

Combustion Hour, Yoon Ha Lee (Tor.com, 4.773 palavras) – Existe um tipo especial de história que, bem sucedida, atrai inevitavelmente suspiros de admiração. São histórias que não exploram modelos prontos, inserindo apenas alguns detalhes ou personagens, mas começam quase do zero, criando a psicologia, a geometria e a filosofia de um universo novo. Isso é Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, de Borges, é Exhalation, de Ted Chiang, e é também Combustion Hour.

O conto traz sua própria definição: “esta história é uma escatologia dos bonecos de sombra”.

Release, Jacob A. Boyd (Analog, 6.305 palavras) – Quando parece que histórias sobre guerras espaciais contra alienígenas já estão esgotadas, Jacob Boyd traz mais um exemplo de que ainda há muito espaço a ser explorado. Ainda não sei ao certo o que ele fez de diferente, mas sei que este é um dos melhores contos de ficção científica dos últimos meses.

Walking Awake, N. K. Jemisin (Lightspeed, 5.577 palavras) – Em apenas cinco mil e quinhentas palavras, N. K. Jemisin consegue apresentar um cenário (a Terra dominada por parasitas imortais), uma protagonista (chefe de operações numa clínica que prepara crianças como novos hospedeiros) e uma possibilidade de revolução. “Parasitas imortais” e “revolução” já deveriam dizer tudo, mas esta também é uma boa oportunidade de conhecer a obra da autora, que tem feito sucesso tremendo com seus romances.

Chapter Six, Stephen Graham Jones (Tor.com, 4.223 palavras) – Uma história diferente sobre o apocalipse zumbi, que mostra um orientador e seu aluno de doutorado em antropologia numa disputa sobre as melhores teorias quanto à evolução humana. Se ainda não estiver cansado de zumbis, veja também Jane, de Margaret Dunlap (Shimmer).

Dim Sum, Maria Dahvana Headley (Lightspeed, 5.464 palavras) – Junho foi rico em histórias que pendem para a paródia, misturando teorias científicas, tecnologia fantásticas e situações clichês para criar piadas que só os fortes entenderão. No caso de Dim Sum, temos o encontro de a presidenta do universo e o seu maior crítico gastronômico, provando bolinhos recheados de buraco negro e outras delícias da culinária espacial. Para outros exemplos de comédia nerd, veja também Plastic Thingy, de Mark Niemann-Ross (Analog) e Jay Lake and The Last Temple of the Monkey King, de Ken Scholes (Tor.com).

Republicações

Love is the Plan the Plan is Death, James Triptree Jr. (Lightspeed, 6.393) – A princípio parece que este é só um conto brilhante sobre astrobiologia, sobre o funcionamento de uma espécie alienígena num planeta distante qualquer. Só depois se percebe que também possui as funções de especulação filosófica sobre a natureza e construção de um universo novo (como comentado em Combustion Hour), entre outras. Original de 1973, é um dos meus favoritos de todos os tempos.

The Cost to Be Wise, Maureen F. McHugh (Lightspeed, 18.268 palavras) – Mais um exercício de antropologia, desta vez bastante sério. Um planeta em fase inicial de colonização perde contato com a Terra e desenvolve sua própria cultura. Mais tarde, são redescobertos, e se inicia um processo complicado de reintegração. Contém cenas fortes.

Knapsack Poems: A Goxhat Travel Journal, Eleanor Arnason (Lightspeed, 6.392 palavras) –Originalmente publicado em 2002, o conto mostra as andanças de um bardo, na juventude dos seus oitos corpos: alguns masculinos, outros femininos e dois neutros (um poeta e um escriba).

The Faery Handbag, Kelly Link (Apex, 7.875 palavras) – No seu multipremiado estilo, que mistura elementos fantásticos e situações cotidianas, Kelly Link mostra as reminiscências de Genevieve sobre sua avó Zofia, suas tardes jogando Scrabble em línguas esquecidas e uma bolsa em que uma vilarejo inteiro se esconde, parado no tempo.

Não ficção

The Issue of Gender in Genre Fiction: A Detailed Analysys, Susan E. Connolly (Clarkesword) – Mês passado tentei comentar um pouco sobre a situação das escritoras no campo da literatura especulativa, mas um trabalho muito mais completo está sendo preparado por Susan Connolly. Nesta primeira parte, ela analisa a participação das mulheres entre as publicações de dezessete das principais revistas. A conclusão, se me permitem antecipá-la, é de que não parece haver distorções significativas entre os gêneros, exceto nas revistas que se dedicam exclusivamente à ficção científica (em oposição àquelas que permitem também fantasia, horror, etc).

  1. A história do Sci Fiction termina tragicamente com a decisão de fechá-lo, por falta de retorno financeiro, levando junto para o abismo 404 todo o seu acervo.