por Luis Felipe Abreu

Estacionada ao lado do Instituto Goethe, uma van recebe a trupe de organizadores da 7ª Festa Literária de Porto. Logo em seguida quem sobe ao veículo é Paulo Scott, um dos participantes da palestra daquela noite, uma edição especial dos Encontros Poéticos promovidos pelo Itaú Cultural. O escritor se acomoda no banco, apertando como pode sua corpulenta figura. “Tava falando com minha mulher no celular agora”, comenta, fazendo referência à atriz Morgana Kretzmann. “Ela tava acompanhando a transmissão da mesa pelo Youtube e veio reclamar que eu tô muito sério”. Todos os presentes concordam, brincam que, sim, Scott não é mais o de antes. “Tá ficando velho, cara”, um deles brinca. Scott ri junto. Depois cala.

Corta para 2001. Aos 35 anos, um engravatado Paulo Henrique Rocha Scott é professor de direito tributário e direito financeiro na PUC-RS, sócio do conceituado escritório de advocacia Volkweiss, Scott & Campos e autor do livro Direito constitucional econômico. “No início, eu tinha essa visão meio romântica do Direito, fazia aquilo por achar que seria possível ajudar as pessoas, ser útil, mudar o mundo”, confessa Scott, que chegou a ser presidente do Diretório Central de Estudantes da PUC em meados dos anos 1980. “Só que chegou o momento, isso no final de 2007, em que advogar não fazia mais sentido para mim. Talvez eu não tenha tido nem a coragem nem o talento pra ser o advogado revolucionário que eu idealizei ser. Aí achei mais importante, para mim e para os outros, ir no caminho dessa coisa incontornável que é escrever”, lembra. Entre a rotina de processos e despachos, naquele ano lança a coletânea de poesia Histórias curtas para domesticar as paixões dos anjos e atenuar os sofrimentos dos monstros. Temendo a possível repercussão dos versos esquisitos em sua respeitabilidade jurídica, assinou o volume sob a alcunha de Elrodris.

Se o volume passou por debaixo dos radares literários, o mesmo não pode ser dito de seu sucessor, Ainda orangotangos, lançado em 2003. Na época Scott já havia consolidado sua figura de agitador cultural, aglutinando ao redor de si e de suas iniciativas de encontros, projetos e festivais toda a efervescente cena cultural daquela Porto Alegre de princípios do século XXI. “Gostava de tocar o terror”, lembra, com o bordão que costuma usar para lembrar de suas noites selvagens. Editado pelo selo independente Livros do Mal, Orangotangos foi bem recebido por público e crítica, chamando atenção por sua prosa de sintaxe curiosa e por seu retrato cru da violência e marginalidade urbana. “O título já revela um pouco isso, da tentativa de mostrar que todos somos meio selvagens, meio macacos ainda”, explica o escritor.

A coletânea de contos chegou a ser finalista do Prêmio Açorianos daquele ano, e seria levada ao cinema por Gustavo Spolidoro em 2007. Ainda um tanto inseguro de ter abandonado a carreira prévia para se jogar na literatura, Scott tomou o sucesso do livro como uma dica de que seguia no caminho certo. “Sempre acho que se o Orangotangos não tivesse a repercussão que teve eu teria voltado para o Direito. Ia ficar escrevendo para mim mesmo, como sempre fiz”, reflete. Não voltou. Em 2005 lançaria seu primeiro romance, a trama noir Volatéis, pela editora Objetiva. A mesma casa o contratou para lançar um volume de poesias, e em 2006 Scott lançou A timidez do monstro, trabalho que considera até hoje o mais sem concessões de sua carreira. “Tem coisas que testei ali de uma maneira que não fiz mais depois, em qualquer outro livro. Acho que é o meu trabalho limite, em que mais me permiti, mas testei formas de expressão”, chegou a comentar. No mesmo ano, finalizou outro livro poético, Senhor escuridão, lançado pela Bertrand Brasil, espécie de ponto de virada na sua bibliografia, sendo o momento em que a temática racial começa a sair dos subtextos para se tornar a principal temática.

De todos os epítetos possíveis e já utilizados por si (e são vários, tendo em vista o caráter performático de sua figura), Elrodris é aquele pelo qual Scott nutre mais afeição. Foi o pseudônimo utilizado para lançar seu primeiro livro, é seu username no twitter e uma referência constante em suas histórias. Apesar da grafia curiosa, a alcunha não carrega nada de obscuro: “É o nome do meu pai”, revela Scott. “É uma contração para Elói Rodrigues Scott”. O Scott patriarca, um delegado aposentado, é uma força sobre o trabalho do filho, influenciando seu trabalho de diversas maneiras.

Outra figura essencial na escrita scottiana é o monstro. O ser presente no título de três de suas obras: além de Histórias… e A timidez… há O monstro e o minotauro, livro artesanal que combina poemas do escritor com desenhos do cartunista Laerte, produzido pelo coletivo cartonero Dulcinéia Catadora para a FestiPoa de 2011. Além de símbolo e síntese para a dicção dissonante de seus livros, o monstro funciona como uma representação de si. Perguntado se é o monstro, Scott responde: “Eu cresci no Partenon, né”, se referindo ao bairro de classe média baixa na Zona Leste de Porto Alegre, localidade com a qual nutre uma relação agridoce. “Crescer em um bairro mais afastado e mais pobre e ter um interesse por arte te torna uma pessoa estranha. Foi ali pelos 12 anos que percebi essa sensação de esquisitice, que notei o quão deslocado soava dizer aos outros que ia ao teatro”, lembra. “Imagina, um guri chegar em casa com um livro do Sartre em um bairro onde todo mundo trabalha duro e não tem esse tempo para viajar na maionese, gostar de arte”, reforça o autor.

E ainda tinha a gagueira. “O negócio era tão grave que ali pelos 11 anos minha mãe disse ‘Desse jeito não dá mais’ e me encaminhou pra uma fonoaudiologia e uma psicóloga”, explica, frisando que, embora controlada, a desordem de fluência não foi totalmente superada: “Ainda hoje se eu me exalto muito, me emociono, começo a gaguejar”. Além das consequências mais imediatas  certo isolamento social na infância , a tartamudez foi decisiva na escolha pelo ofício da escrita: “Preciso articular muito bem cada frase antes de falar, para evitar os deslizes. É parecido com escrever, esse trabalho de escolher as frases com cuidado.”

Ao pensar o trabalho de Scott é impossível não frisar  ainda que inutilmente, ainda que apenas a título de curiosidade  cruzamentos entre a vida e a obra. Um dos romances que tem engatilhado (afirma ter mais de vinte deles planejados) se vale desta relação: “Meu próximo livro seria, a princípio, sobre o meu pai, mas pensando e rascunhando acabei mudando o foco para a relação minha com o meu irmão”, conta, adiantando que o título Marrom e amarelo é uma referência ao irmão, mulato escuro, e a si, mulato claro, “meio pardo, branco sujo”. Dois dias depois, tuitaria a seguinte mensagem: “aproveitando a passagem pela cidade de porto alegre para começar a escrever oficialmente o romance ‘marrom e amarelo’”. A relação com a cidade também é central à poética scottiana  não por acaso seu êxodo da Porto Alegre coincide com o maior giro de sua carreira.

Em 2008 Scott fechou as malas e rumou para o Rio de Janeiro. “Eu fui em busca de desafios”, explica Scott diante do bar em que os organizadores da FestiPoa comemoram o sucesso do dia. O escritor encolhe os ombros, mãos nos bolsos, balançando seu corpo de 1,82 m. “Foi uma questão de procurar o desconforto”, elabora, oferecendo uma chave precisa para pensar sua carreira. “O Tom Jobim dizia que o Rio não é para amador. E não é mesmo. É complicado, tem que saber lidar. E ainda tem o fato de que meus grandes amigos não estavam estão no Rio. Não conhecia tanta gente lá, como conhecia em São Paulo, por exemplo, esse é outro desafio”, reflete.

O primeiro trabalho concluído nesse exílio carioca foi Habitante irreal, romance lançado em 2011 pela Alfaguara e um divisor de águas e interesses em sua bibliografia. Se Senhor Escuridão era a fumaça, Habitante é o fogo: além de arriscar um painel geracional de quem viveu a desilusão com a esquerda nacional, o livro aborda o apartheid indígena e a miséria decorrente, flertando tanto com artifícios pós-modernos quanto com a tradição romanesca nacional. Escrito ao longo de oito anos, o romance serviu de catapulta. À época do lançamento, o crítico Sérgio Rodrigues apontou o livro como um indicador de caminho possíveis, se não necessários, à prosa brasileira contemporânea. Giovanna Dealtry teceu loas no caderno Prosa & Verso, do Globo, afirmando a força da narrativa e sua capacidade de representação de um período da história brasileira. Em dezembro de 2012, recebeu da Biblioteca Nacional o prêmio Machado de Assis, de melhor romance. Surfando na crista da onda  ou fazendo um flip de 360º, para ficar em seu léxico de ex-skatista , consolidou o Scott maduro.

Aos 48 anos, Scott sustenta uma figura bastante diversa daquela apresentada no começo de sua carreira. Os cabelos agrisalhados nas têmporas e a barba densa, também dona de seus fios brancos, não parecem pertencer ao jovem de cabeça raspada, óculos de armação extravagante e olhar irônico presente em fotos antigas do autor.

Em A timidez do monstro, abaixo de uma foto lo-fi de Scott, a tradicional biografia do escritor que adorna a orelha do livro é atravessada por uma frase incomum para esses textos tão pasteurizados: “Durante dois anos, ao cursar o mestrado, Paulo Scott não escreveu sequer uma linha poética e adoeceu”. O conjunto serve para definir com precisão a figura apresentada pelo escritor na primeira metade da sua carreira, uma mescla de excentricidade e lirismo. Já a postura austera do retrato presente em Habitante irreal é um signo de outra ordem, do Scott em preto-e-branco, experiente.

Não só o aspecto físico se alterou ao longo de seus 13 anos de carreira: sua própria trajetória é repleta de fraturas. Ao travar diálogos autobiográficos, é frequente que cite sua aversão a zonas de conforto. Sempre que se sente estabelecido, busca novos modos de se pôr em desalento. Lançado por um livro de contos, nunca mais voltou à narrativa curta. Ao publicar dois livros de poesia por grandes editores, ganhando certa repercussão com um gênero tradicionalmente marginalizado pelo mercado nacional, partiu de vez para a prosa. Ao se consagrar com um romance extenso, permeado de vozes e pretensões, lança uma novela curta, singela: Ithaca Road, uma história de amor publicada pela Companhia das Letras em 2013.

Ao tornar-se figura incontornável em Porto Alegre (é difícil citar o nome de Scott diante de alguma figura da cena cultural local e não ouvir um causo), mandou-se para outra cidade, uma que teria de desbravar do zero, sem ajuda de amigos. Notório por sua capacidade de agitar círculos literários, criou iniciativas como o  Póquet: ruído e literatura – Escritores que tocam, Músicos que escrevem, o projeto de arte visual Na TáBUa e a “revista ao vivo” De modo geral. Há cerca de dois anos não produz mais nada. Apesar disso, a fama o persegue. Quando a conversa da FestiPoa foi aberta a perguntas do público, a primeira pessoa a se levantar foi Cristiane Cubas, organizadora da mostra-projeto-coletivo Cabaré do Verbo. “Não tenho bem uma pergunta”, avisa. “É mais uma provocação: porra, Paulo Scott, por que tu não organiza mais nada?” Ela lembra de Scott como um dos primeiros incentivadores do Cabaré e uma pessoa que, a sua maneira, mudou a cara da cultura na cidade. Scott pede desculpa, meio de brincadeira, meio sério, e explica: “Eu acabei cansando, entrando em outras atividades. Organizar um evento é uma parada muito desgastante e que acaba te impedindo de produzir. E escritor tem que escrever, mais que qualquer outra coisa.”

Scott escreve: costuma se jogar de cabeça em seus projetos, levando cerca de três anos para completar um livro. “Eu sou escritor em tempo integral”, comentou em entrevista ao programa Metrópolis, da TV Cultura, em 2011. “Ao contrário de outros colegas que traduzem, fazem textos para imprensa, para editoras, eu tenho tentando me manter só com meus livros”, explica. Essa experiência de ter a ficção como renda exclusiva durou três anos e rendeu material para O ano em que vivi só de literatura, seu próximo romance, a ser lançado ainda este ano pela editora Foz. “É uma sátira sobre o comportamento de certos autores e de mim mesmo, e do cenário literário como um todo”, adianta Scott, revelando sua relação nunca tranquila com o meio. Crítico, agitado ainda que um tanto cabisbaixo, articula sua próxima ruptura.

Encolhendo-se sob o vento frio que sopra pelo Bom Fim, ainda mais gelado para quem acostumou a pele ao tropicalismo carioca, Scott diz que não aguenta mais. “Tô ficando cansado, sabe?”, diz em um de seus característicos rompantes de franqueza. “Sinceramente, bicho…”, repete enquanto vai desabafando suas dúvidas com frases em fade-out, a voz morrendo em meio às afirmações. “Tenho que mudar meu modo, minha dinâmica… ter menos ansiedade… porque a verdade é que não tenho mais condições de viver como eu vivo… só da ficção que eu escrevo e das palestras que dou… tive meu momento, um tempo em que o sonho funcionou, foi bacana, mas é hora de articular um plano B”, murmura enquanto vagueia o olhar, como se perdesse de vista a outra ponta do diálogo, engolido pela bruma de suas dúvidas. “Esse plano seria algo fora da literatura?”, pergunta o interlocutor, na tentativa de não se ver desvanecido. “É, talvez sim, talvez fora”, responde o escritor. “Voltar a dar aula, talvez. Mas não sei. Sinceramente não sei, bicho”, completa, antes de se dirigir para dentro do bar, para acompanhar os amigos. Ainda que melancólico, segue para tocar o terror Scott, poeta do desconforto.