Diria, se não conhecesse o livro, que A paixão é o título de um romance açucarado, daqueles de banca de jornal destinado às boas moças casamenteiras. Imagino um livro no qual se conta a história de uma mulher jovem que não esperava grande coisa da vida, apesar de sempre se mostrar boa para a família. Sua vida muda quando conhece um homem, seu “príncipe”, que será responsável por sua felicidade. A paixão aí é claramente uma relação em que a mulher, assim como a leitora do livro, será rendida por alguém. Na verdade, esse não é o caso da obra na qual estou pensando: A paixão (1965), o primeiro romance da chamada “tetralogia lusitana” de Almeida Faria. A paixão aqui é felizmente muito maior e mais complexa.

Antes de pensarmos melhor nessa paixão que inicia toda uma série de livros, é bom pensar que Almeida Faria, escritor português hoje consagrado, já foi um iniciante quando lançou Rumor branco (1962), que o revelou ao público em pleno regime salazarista. Trata-se de uma espécie de romance-poesia, um romance de formação muito especial. A paixão, lançado poucos anos depois (e ainda no Portugal salazarista), segue a mesma linha, ainda que se apresente já como o início de um projeto literário.

Essa palavra (“projeto”) tão malfadada nos meios intelectuais, odiada por todo escritor submetido a um entrevistador, me vem com a consciência de que talvez eu seja mal entendido. No caso de Almeida Faria, acredito que o próprio autor, de acordo com o prefácio por ele escrito para a mais recente edição brasileira (Cosac Naify, 2014), concordaria que sim, A paixão é a abertura de um mundo que não se encerra com a última linha do romance. As personagens ali são apresentadas ao longo de uma Sexta-Feira Santa (ou Sexta-Feira da Paixão), porém não têm seus conflitos resolvidos de modo algum. Se pensarmos na estrutura clássica de um romance, não há qualquer clímax que nos alivie a tensão da leitura.

Acredito que a edição da Cosac Naify também pensa A paixão como um projeto bem acabado. O próprio projeto gráfico da edição se reflete na estrutura da obra ou vice-versa: o livro tem três tipos diferentes de papel, com colorações distintas, para cada uma das partes do romance, correspondentes às fases do dia (manhã, tarde e noite). Essa questão, é claro, influencia a leitura do romance, mas também se deve a uma interpretação do projeto desse romance por parte da editora.

A partir dessa interpretação, pode-se deduzir que A paixão trata do tempo de um dia de maneira muito própria, afinal manhã, tarde e noite não tem distribuição idêntica de páginas; muito pelo contrário: fica claro que a manhã é muito maior do que a tarde, e a tarde maior do que a noite. Além de isso ser reflexo da organização física do livro em si, como objeto, também lembramos que, em uma área rural como o Alentejo, onde se ambienta a obra, manhã e tarde são de fato os períodos de trabalho e convivência das pessoas. Mesmo em um dia como a Sexta-feira Santa, tal fato se mantém verdadeiro. A diferença básica, motor de toda a obra, é que a tensão entre o sagrado e o profano, entre o individual e o coletivo parece se tornar mais evidente. Todas as personagens a partir daí começam a definir reflexões acerca da vida, fundamentais para o resto da tetralogia, como João Carlos, figura revolucionária semelhante a Daniel João, de Rumor branco.

Nesse dia santo, personagens como Piedade, que abre a manhã de A paixão, continuam a exercer suas tarefas domésticas diárias do mesmo modo de sempre, com certa monotonia e aflição, o que se percebe pela forma em que se estrutura a narrativa. À moda joyciana, Almeida Faria parece deixar livres suas personagens na manhã do romance para se apresentarem cada um a seu modo, inclusive com grandes mudanças linguísticas e estéticas no texto. O narrador aqui não é de modo algum único – ou ainda unitário –, o que nos induz a uma leitura múltipla desse dia. Parece ser uma evolução da parte do autor feita a partir de Rumor branco, que se estrutura formalmente de modo diferente com o avançar da vida do protagonista (novamente à Joyce, como no Retrato do artista quando jovem).

Apesar da clara presença das vanguardas modernas na estética romanesca de Almeida Faria, não podemos limitar suas referências a um remoer sem fim de referências cultas. O autor, assim como outros dos anos 60 e 70 em Portugal, foi de fato muito comparado com outros escritores experimentais anteriores, como aqueles do nouveau roman, o “novo romance” francês. Acredito que ele, assim como seus contemporâneos, foram fundamentais na ruptura daquela que poderia ser chamada de “cisma” da ficção portuguesa, seguindo a “cisma da poesia brasileira” (concretos x marginais) enunciada por Marcos Siscar.

No caso português, o posicionamento essencial em tempos conturbados politicamente entre neorrealistas e existencialistas entre os prosadores do país esgotou discussões estéticas acerca do romance por certo tempo, isso até revelações como Almeida Faria lançarem textos estimulantes como Rumor branco e A paixão. Trata-se de obras essenciais na construção da história literária portuguesa, lidas por figuras consagradas como António Lobo Antunes, que, em citação na contracapa da edição da Cosac Naify, afirma ainda se lembrar da admiração que teve por A paixão à época de seu lançamento. Na obra de outros romancistas lusitanos mais jovens, como José Luís Peixoto, também se vê tal presença por meio da própria criação. A paixão desse romance, como se vê, vai muito além daquele de um best-seller de banca de revista para chegar a uma compreensão maior e sublime da linguagem como expressão da vida.