Quando Viagem ao fim da noite foi publicado, em 1932, parecia que a polêmica e o estrondo que seu autor, Louis-Ferdinand Céline, causara não seriam superados tão cedo. O livro angariou tantos admiradores, tanto entusiasmo nas críticas e tanta empolgação (da direita e da esquerda) que parecia difícil que Céline fosse estar debaixo dos holofotes por outra razão que não a linguagem e o espírito transgressor de seu livro.

Se Heródoto estivesse vivo à época, talvez dissesse: “Ledo engano”. Céline voltou para a cena central e os olhares se voltaram para ele novamente, mas não por conta de sua literatura, e sim por conta de seus panfletos antissemitas.

Os três panfletos foram publicados às vésperas e durante a invasão nazista da França (1937, 1938 e 1941). Enquanto a bandeira com a suástica tremulava no topo da Torre Eiffel, os invasores alemães trataram de não só desmontar as defesas francesas militarmente falando, mas tentar trazer para o seu lado aqueles cuja identificação ideológica pudesse apontar nessa direção. Esses sujeitos ficaram conhecidos como “os colaboracionistas”, e foi nesse espiral de mudanças que Céline resolveu tomar parte.

A invasão nazista inflamou os brios de muitos franceses, e não demorou muito para que um movimento armado de oposição se organizasse entre eles. A Résistance dificultosamente despontou sob o comando de sujeitos que hoje são tidos como heróis nacionais, tais como Charles de Gaulle, e acabou por expulsar os nazistas em 1944.

O governo de Pétain, ocorrido sob os auspícios nazistas, encontrou-se em maus lençóis com o avanço da Résistance, tendo que fugir de Vichy, local que desde a ocupação nazista se tornara a sede do governo. Um processo parecido se deu com os colaboracionistas, pois com o fortalecimento de um novo governo francês, oriundo das fileiras da resistência, iniciou-se um período que ficou conhecido como “caça aos traidores”, durante o qual diversos intelectuais, políticos, soldados e personalidades colaboracionistas foram condenadas, presas, injuriadas e perseguidas. Não somente pelos membros da Résistance, mas pela própria população francesa.

Céline foi um desses fugitivos. Seus panfletos e sua colaboração com os nazistas lhe renderam o ódio dos franceses e a implacável perseguição para enquadrá-lo no Artigo 75 da legislação pós-ocupação, que estabelecia penas e multas àqueles que auxiliaram na tomada da França. Num primeiro momento ele partiu para Siegmaringen, uma vila na Alemanha para onde foram diversos “colabos” (como Céline chama os colaboracionistas), almejando partir posteriormente para a Dinamarca, onde estavam suas economias e a chance de ter uma vida menos atribulada.

Céline quis ser o memorialista desse obscuro capítulo da história francesa, no qual 1142 colaboracionistas (a cifra é apontada pelo autor) foram reunidos em Siegmaringen (incluindo Pétain e seu braço-direito Laval) e tiveram que viver como que num cerco, com poucos mantimentos e sob a constante ameaça do avanço do exército Leclerc (que os caçava). O fruto desse esforço de Céline foi a trilogia de livros De castelo em castelo, Norte e Rigodon.

Acossados pelo exército da resistência, o governo e os colaboracionistas buscaram apoio dos nazistas para conseguir retirar-se do território francês, embora em diversos locais pelos quais passaram eles tenham sido hostilizados pelos franceses. A série de livros acompanha a retirada da França, os constrangimentos da travessia, o estabelecimento em território alemão, a repercussão de todos esses eventos e o triste cotidiano em Siegmaringen.

O vilarejo não contava com infraestrutura para abrigar uma leva de, estima-se, em torno de 2 mil pessoas. Segundo as preciosas notas de Rosa Freire D’Aguiar, a tradutora brasileira, até antes da chegada dos fugitivos, Siegmaringen tinha uma população de 4 mil pessoas, o que dimensiona bem o tamanho do abalo da chegada desse contingente. Não havia alojamento para todos, não havia mantimentos, não havia condições estruturais para a permanência deles.

Em meio ao rescaldo da reconquista de seu território, os franceses não se preocupavam muito com as condições de vida desses sujeitos, pois privá-los era enxergado também como forma de retratação pela traição por eles perpetrada “contra a nação e o povo franceses”. A preocupação das autoridades do novo governo estavam muito mais voltadas a enquadrá-los no Artigo 75, poder capturá-los e infligir-lhes o peso do expurgo espiritual que tomava conta da opinião pública francesa.

De castelo em castelo é muito mais um diário ou livro de memórias do que propriamente um romance. E como livro de memórias tem mais o caráter de reunião de lamentações do que de escritos com preocupações mais narrativas. Escrito nos anos 50, quando Céline tentava reestabelecer-se como médico em Meudon, o livro é o expurgo do autor em relação ao expurgo a ele imputado pela “caça aos traidores”.

Com sua língua ferina e sem peias, preservando muito do estilo mordaz que encontramos em Viagem ao fim da noite, Céline põe-se a distribuir impropérios e ridicularizar a epopeia de retratação promovida pelos franceses após a reconquista. Sem descambar para o piegas ou o melancólico, o autor tenta mostrar, com um certo sarcasmo ambíguo, como era triste o cotidiano de Siegmaringen, no qual aqueles 1142 fugitivos tinham de disputar comida, racionar espaço e provisões médicas para as parturientes e crianças.

Embora uma leitura nesse sentido possa ocorrer, Céline não tentou (felizmente) fazer os leitores se compadecerem daqueles sujeitos, pois nesse caso certamente teria despertado mais intensamente o repúdio dos franceses, já que seu antissemitismo ajudou a condenar sujeitos a condições tão (e em muitos casos mais) degradantes do que aquelas que aparecem em De castelo em castelo. Sem hierarquizar penúrias, o fato é que, em termos morais, é pouco provável que Céline pudesse se colocar, perante os ânimos do pós-guerra, em um mesmo patamar de sofrimento do que os atingidos pelo nazismo.

Considerando todas essas questões, é possível perceber, ao menos em parte, o lugar desconfortável que essa trilogia ocupa entre as obras de Céline: encontramos algo do eflúvio transgressor empolgante da sua obra-prima, mas cujo eco reverbera numa situação totalmente diferente. Não é difícil se identificar com Bardamu em suas desventuras, mas é muito difícil encontrar a mesma complacência ou proximidade com o “protagonista” de De Castelo em castelo. Sem soar moralista ou relativista demais, creio ser possível definir esse livro como um livro ambíguo, tão ambíguo quanto a situação de Ezra Pound, e tão ambígua quanto o lugar que Céline ocupa no cânone literário: expressando o desconcerto causado pela constatação de que o terrível e o belo costumam andar juntos.