Na crônica “O legado de Kudno Mojesic” – presente no recém-lançado O louco de palestra, de Vanessa Barbara –, a escritora se dá o direito de medir um corso1 de forma inusitada.

Toda essa multidão, atordoada, decide dispor de seu direito de ir e vir geralmente ao mesmo tempo, provocando congestionamentos que já chegaram a 266 quilômetros, em maio de 2008 – a distância equivale a 3,325 milhões de potes de Yakult.

Mas Vanessa está só se exibindo – afinal, medir uma grande extensão com embalagens de leite fermentado com lactobacilos vivos não é nada. Junte a sabedoria de Arnaldo Antunes (“as coisas não têm paz”) à do celebrado musical Rent (que oferece uma tabela de medidas para a vida de um ser humano que inclui dias, noites, xícaras de café, risos, polegadas e discussões, até chegar à melhor opção, a mais açucarada possível) e você vai perceber que pode medir qualquer coisa de qualquer forma.

Decidi, então, que mediria a Flip em abraços.

E faz sentido. Se em 2012 a medi em pés cansados e em hits que tiveram as letras modificadas para incluírem meu apelido (e se em 2013 a medi em memes literários e em vezes que disse que aquele era o ano do bigode2), 2014 foi, sem sombra de dúvidas, o ano do abraço.

As pessoas se utilizam de cumprimentos os mais diversos. Saúdam-se: à distância, com um tchauzinho (mesmo que a 30 centímetros de distância); com um beijinho ou dois ou “três, que é pra casar!”, encostando-se ou não (pode até rolar um “selinho”); com um aperto de mão, que apresenta as opções “secreto”, “high five” (tem quem o faça sem olhar!), “aperta que nem macho!” e “só dei a patinha”; e, finalmente, com um belo dum abraço. Eu não sei quando, como e por que me tornei um abraçador, mas o fato é que, se eu caísse na historinha errada e a Chapeuzinho dissesse “Mas, vovó, que braços grandes você tem…”3, eu seria obrigado a pular da cama e gritar “São pra te abraçar melhor!”.

Mas não é todo mundo que gosta deles. Uma amiga, que não curte muito abraços4, ficou quietinha toda vez que cheguei chegando5; além disso, abracei mesmo os que reviravam os olhos segundos antes de eu encostar neles. Um dos meus melhores amigos – chamemo-lo G. – sempre fingia querer escapar: “Vanessa, me salva! O Tuca tá me abraçando de novo!”. Uma das residentes mais lindas da Casa Posfácio me fez calibrar a força utilizada: “Eu não sou o G.! Menos, menos… Pronto, assim tá bom.”.

Enfim, foi uma Flip profícua em abraços. Saí por aí – quero dizer, por lá – abraçando geral. Segue uma lista de nomes de figurinhas carimbadas, que podem já ter dado as caras no Posfácio, com as respectivas razões para os abraços6.

Tá fora de ordem, como a memória.

José Luiz Passos: esse pernambucano arretado inaugurou a Flip de 2013 para mim e este ano repetiu a dose, dessa vez como mediador. Tenho de elogiar seu timing cômico, que não dispensa a elegância – uma de suas piadinhas iniciais indicava que ele fizera a barba para combinar com a juventude dos autores que o acompanhavam. Pediram “sangue” na mesa, falaram que a mesa estava “fria”, mas se ninguém sangrava era porque Passos e Catton eram habilidosos demais na esgrima verbal. Deu gosto de ver: parecia roteirizado e ensaiado por meses, de tão hábeis. Abracei-o tão logo tive a oportunidade.

– Não sei se abracei Clarice Falcão. Fiquei tão surpreso e emocionado e envergonhado e com aquela vontade de mandá-la ler naquele instante os dois textos que escrevi sobre ela7, que não lembro se abracei. Não vou negar: paguei mico.

altAuYoDasHIdHIcOkBF81WiVTWnzmEGKl1pvLiqYHJ1MrG

– Fui à casa do Sesc, só para dar um abraço rápido em Luisa Geisler – pense numa guria que não parou quieta a Flip inteira! Pudera: lançando livro novo, tá mais do que justificado – alguns mais afortunados conseguiram comprar seus exemplares ainda em Paraty, vide a imagem acima. Santiago Nazarian estava ao seu lado, mas não o abracei porque ainda não o li – numa próxima Flip, talvez… Já estava indo embora quando ouvi aquele sotaque bom da minha terra falando que “escritor não tem que ‘dar voz’ a ninguém, parece que a pessoa não tem voz própria se não for escrita”. Era Marcelino Freire, que me fez quebrar a promessa de não comprar livro algum na Flip. Comprei Nossos ossos para ele autografar (já li e adorei, aliás) e dei um belo dum abraço no cidadão.

– Contentei-me em ficar do outro lado da mesa de autógrafos (nada de abraços!) no caso de Andrew Solomon, Joël Dicker e Fernanda Torres. Fui um dos últimos a terem a chance de ter o livro assinado por esta (ela fez um desenhinho!) e conversei um tantinho com este sobre a coluna em que falei de seu livro. E, se não abracei Andrew Solomon (ATENÇÃO: sentimentalismo barato à vista!), suas palavras me abraçaram: chorei a conferência inteira. Chorei pegando autógrafo (por escrito, o moço me desejou “coragem e força” no Longe da árvore e “alegria” em seu tratado sobre a depressão, O demônio do meio dia), chorei caminhando de volta para a Casa Posfácio e devo ter chorado ainda mais um pouquinho no meio da festa da editora Intrínseca. Lavei a alma.

– Quem não está nem aí para a programação oficial da Flip e quer saber mesmo desses novos poetas e criadores de narrativas breves, vai ficar feliz com os nomes a seguir. Gabriel Pardal não foi, mas Guille Thomazi estava lá representando o time das narrativas curtas: virou bróder, pra qualquer hora do dia, e conquistou o coração das moças com… seu cartão de visitas/marcador de páginas. O time dos poetas foi engrandecido por Marcos Bassini e Alice Sant’Anna, que não devem ter me reconhecido, de bowie, no meu canto – ao menos a moça eu consegui abraçar.

– Mas não Adriana Falcão. Soube meio sem querer que ela estava em Paraty, mas só me deram indicações erradas de onde encontrá-la. No final, as pernas tremiam e não pude seguir nas buscas. Uma boa hora de exercer a filosofia popularizada pela já clássica animação da Disney, Frozen: let it go!

– A festa da Companhia das Letras foi um abraçaço. Tinha Emilio Fraia, Simone Campos, Raphael Montes, Antônio Xerxenesky – aliás, foi nela em que abracei Passos e vi Clarice. Lembro-me claramente de ter abraçado o André Czarnobai – o famoso Cardoso – e de lhe ter dado um puxão de orelhas8 por pular uma piadinha referente ao musical Wicked9 em sua tradução de Cadê você, Bernadette?; ele se safou jogando a culpa na preparação de originais. Na festa, também deu para abraçar Alexandre Vidal Porto10 e conversar sobre muita coisa que me fez ter fé na suposta relevância de minha dissertação.

– Mas o destaque mesmo é para Antonio Prata. Afoito, percebendo que não conseguiria vê-lo em nenhum dos eventos em que o autor estaria presente, pedi a Maria11 que pegasse o autógrafo dele para mim. Depois disso, em vez de me sentir grato, me peguei pensando “e se o encontrar na rua, como vou poder garantir meus dois dedos de prosa com ele, sem livro para autografar?”. Ainda pensava nisso, num momento sozinho no meio da festa citada acima, quando me virei e voilá!, lá estava o moço. Falei tudo que meu coração mandou12 e pedi um abraço. E ele me deu um. E, se ficou constrangido, disfarçou muito bem.

– Costuma ser elegante terminar uma coluna retomando as ideias iniciais – mesmo que ela tenha descambado para uma lista. Voltemos a Vanessa Barbara, portanto. Eu não sei se é feio ser fã de alguém que se ofereceu para sapatear de tamancas nas costas de quem me machucou, mas não ligo: se meu cérebro continua a sentir cócegas quando leio cada parágrafo escrito por essa mulher, eu tenho (sim!) o direito inalienável de (1) me arrepiar com os autógrafos dela e (2) continuar chamando a moça pelo nome completo – mesmo nos contextos mais comezinhos13. Ela só deve ter perdido em abraços para G. e para Dindi, essa poeta maravilhosa com quem divido quarto em toda santa Flip.

Isso que é o legal da Flip. Sabe toda essa gente que alimenta nossas mesas de cabeceira durante o ano? Tá todo mundo ali, à distância de um abraço.

  1. Coletivo de “carro (em desfile)” que acabo de descobrir. Creio que engarrafamentos não deixam de ser uma (disfuncional) parada do orgulho automobilístico.
  2. Full disclosure: o Leminski estava na lista de mais vendidos E eu carregava um exemplar da espécie embaixo do nariz.
  3. Mentira. Eu faço academia, mas não é pra tanto.
  4. Juro que eu não sabia!
  5. Ainda não sei como ela não gritou nenhuma vez. Eu teria.
  6. Ahn?! “E precisa de razão pra abraço?”, você me pergunta. Lógico que não, mas a lista ficaria meio chatinha se eu jogasse apenas os nomes, né?
  7. Tem um aqui no Posfácio e outro no meu blog esquecidinho.
  8. Metafórico: ele é BEM mais alto do que eu.
  9. Ou ao Mágico de Oz.
  10. Se você não leu o livro por recomendação minha – “não acredito em quem parece ter cérebro de whey” –, ao menos vá na onda de Carol ou de Camila e leia!
  11. Ela, inclusive, resenhou Nu, de botas para o Posfácio.
  12. Devo ter dito coisas como “nunca sei se rio ou choro com as tuas crônicas, então faço os dois” e “você e Vanessa Barbara tornam a minha existência possível”, mas me esqueci de dizer que “eu muito provavelmente resenharia (o seu livro) em versos metrificados e rimados.” E não me arrependo nem um tiquinho.
  13. “Vanessa Barbara, por favor, passe-me a geléia.”