A literatura encerra muitas propriedades, artifícios e situações curiosos. Ainda há pouco escrevi aqui no Posfácio a respeito da literatura de Louis-Ferdinand Céline, escritor francês que realizou a curiosa e triste proeza de, após ter criado uma espetacular obra como Viagem ao fim da noite, ter dedicado seu talento literário ao sinistro ofício de redigir panfletos antissemitas às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Trata-se de um fato curioso, deveras, ainda que num sentido um tanto desconcertante.

Apesar de Céline, no entanto, essa resenha se debruça sobre outra propriedade curiosa da literatura, uma propriedade que pode ser encontrada no diminuto romance (ou seria novela?) de Denis Johnson intitulado Sonhos de trem. Felizmente o escritor não redigiu panfletos antissemitas, e sim chamou a atenção (nesse caso num sentido positivo) por conseguir combinar rusticidade e elaboração sensível de uma maneira muito interessante.

Em termos de enredo e mesmo de elaboração estética não se trata de um livro ousado. Sonhos de trem conta uma história em terceira pessoa e de forma linear, acompanhando alguns eventos da vida do personagem Robert Grainier, um trabalhador que viveu nos Estados Unidos do início do século XX. O trabalho do protagonista estava ligado à construção de ferrovias, elemento emblemático, pois se trata das veias metálicas pelas quais correu a seiva da modernização estadunidense.

Não se deixe enganar pela aposta aparentemente simplória de Denis Johnson. O fato de o livro repousar numa narrativa de cunho realista (alguns diriam “verista”) não abafa as possibilidades metafóricas e simbólicas da escrita, como, aliás, nenhuma boa narrativa realista. É em grande parte por conta dessa aposta no realismo que Johnson consegue levar a cabo o curioso artifício acima referido.

Grainier é o que alguns talvez chamariam de um sujeito “bronco”. Como ele é um sujeito que se dedicou a trabalhos braçais ao longo de boa parte de sua vida, suas disposições de espírito acabaram se embrutecendo tal como sua estrutura corporal. Sua maneira de lidar com o mundo, muito pragmática dadas as circunstâncias, faz de seu retrato literário uma exploração de sua rústica visão de mundo, dando margem a uma espécie de inocência. Guardadas as devidas proporções, ele talvez se aproxime da figura de Lennie, o agigantando personagem de Ratos e homens.

Apesar dessa aspereza, no entanto, Johnson dá conta de organizar o enredo do livro de modo a colocar seu protagonista em situações que desafiam os limites de sua percepção. Logo no início Grainier é colocado diante de um trabalhador imigrante chinês que será executado. Num ponto posterior da trama, descobrimos que ele conversou com um homem moribundo no passado. Mais adiante ainda, descobrimos que ele perdeu sua esposa e filha num incêndio que se abateu no bosque onde moravam.

A estruturação do livro de um ponto de vista mais amplo funciona de forma similar: Johnson ambienta sua trama num período crucial para a modernização dos Estados Unidos, mas se volta para um personagem comum para contá-lo. Assim, ele abre a possibilidade de lidar com um momento histórico a partir de uma perspectiva diferente, a de um dos inúmeros trabalhadores que por meio de sua obscura faina ajudaram a sedimentar a base sobre a qual se assentou a América “terra das oportunidades”. Ou seja, ao invés de olhar a estrondosa mudança que se operava, o autor resolveu fazer seu olhar incidir num dos vértices menos conhecidos desse processo.

Antes de se voltar aos Rockefellers ou aos Morgans que financiaram essa empreitada, Johnson procura entre os homens comuns daquele período seus personagens. Nessa perspectiva, o livro acaba por mostrar como os fundamentos da modernidade norte-americana foram fixados por sujeitos nada modernos no seu modo de viver e se conceberem no mundo. Sonhos de trem consegue falar do simples sem cair no banal, e sem pender para a empobrecedora dicotomia ricos-moralmente-reprováveis e pobres-necessariamente-virtuosos. O autor aposta numa visão da realidade que a toma como uma tessitura mais complexa, que não pode ser reduzida a dois pólos opostos.

O que todos esses eventos e essas características (cada qual a seu modo) permitem em termos de exploração literária é trabalhar com a maneira como Robert Grainier, com sua visão rija das coisas, irá reagir diante de situações que o obrigam a extrapolar essa couraça criada por seu tipo de existência. Tão logo Johnson descreve-nos uma situação-limite, ele passa a postar-se diante de Grainier para observá-lo agir perante ela.

Colocando-se no cruzamento da “grande história” com a história de gente comum, e também na encruzilhada do sujeito de modos simples diante de situações espiritualmente complexas, Denis Johnson consegue dotar Sonhos de trem de uma força humana muito poderosa.

O curioso resultado dessa forma de construir o livro é que, apesar da casca grossa do protagonista e da trama, Johnson conseguiu construir uma narrativa sensível, fina e muito bem azeitada na sua maneira de tratar de nuances espirituais do protagonista. A seu modo, essa concepção narrativa de Johnson se aproxima daquela de Per Petterson (como em Cavalos roubados) ou a de Knausgard (como na autobiografia Minha luta). Todos esses são livros que têm feições casca grossa mas que são sensíveis em seu interior, na maneira com que lidam com as situações e os personagens.

Percebemos pouco a pouco que apesar do exterior embrutecido de Robert Grainier, desenvolve-se nele uma forma toda especial de lidar com sua existência, o que acaba por nos apresentar um sujeito com singeleza no pensamento mas uma interessante ponderação na forma de postar-se perante o mundo. Em outros termos: Sonhos de trem é, curiosamente, um livro fino na forma, e grosso no conteúdo.