Como campos do saber que foram criados baseados em pressupostos e objetivos diferentes, e que tiveram todo um desenvolvimento distinto entre si, a história e as letras serão sempre interlocutores que, embora possam se aproximar e interseccionar, travarão debates acalorados. Isso não se constitui num problema, já que é precisamente na alteridade epistemológica existente entre ambos que surge o espaço para o crescimento e a exploração nos dois sentidos. E é nesse espaço que Roberto Schwarz soube se inserir com perspicácia.

Autor de uma poderosa obra, que se debruça sobre variados escritores e questões, Schwarz se constituiu, ao lado de Antonio Candido e Alfredo Bosi, um dos mais proeminentes intelectuais do campo das letras no Brasil. Seu ensaio As ideias fora do lugar (que dá título à coletânea de ensaios lançada recentemente) já é considerado um clássico nesse campo de estudos, e continua servindo de base para explicar uma porção de questões concernentes à literatura brasileira oitocentista.

Partindo da noção basilar de que a literatura está enraizada, através do escritor, num mundo concreto que é objeto de estudo da historiografia (noção que ainda gera controvérsia e resistências), Schwarz analisa como o sistema de ideias e valores que vicejou no Brasil no século XIX, com sua peculiaridade e suas contradições, contribuiu para moldar a textura estética e temática da literatura do período. Segundo Schwarz, foi o choque existente entre o eflúvio dos ideais liberais europeus e a realidade escravocrata e paternalista brasileira que se constituiu numa das principais matérias-primas da literatura brasileira, e a razão pela qual ela assumiu sua forma.

Poder-se-ia argumentar que esse problema não foi trabalhado pela primeira vez por Schwarz, e de fato não foi. Antes dele a intelectualidade brasileira já havia tomado o desenvolvimento desigual e combinado do Brasil (levando em consideração a dinâmica centro-periferia) como tema de inúmeras investigações, tais como os trabalhos de Caio Prado Jr., Celso Furtado, Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes e outros mais. O que se buscava entender não era somente o desenvolvimento econômico do Brasil, mas, através desse, os desdobramentos sociais, culturais, políticos, morais e espirituais do povo brasileiro.

Apesar do não pioneirismo nesse sentido, Schwarz conseguiu abarcar essa caudalosa (e fascinante) discussão como forma de enxergar a peculiaridade da cultura e da literatura brasileiras. O crítico literário conseguiu mostrar como o sentido e a dialética da colonização, em face da posterior evolução histórica do Brasil, ajudaram a moldar o pensamento brasileiro num contraditório amálgama: liberal no discurso, escravocrata e baseado em favores na realidade concreta. A tônica da literatura, como partícipe necessária desse “estado de coisas”, não poderia deixar de ser plasmada por essas questões, fazendo com que escritores como Machado de Assis e José de Alencar encerrem em suas obras preocupações nessa direção.

Assim como Florestan Fernandes declarava que seu A revolução burguesa no Brasil buscava entender o difícil desenvolvimento do capitalismo na periferia, também As ideias fora do lugar buscou entender o difícil desenvolvimento da literatura num mundo em que os ideais liberais não surgiram “organicamente” como na Europa. Se Caio Prado Jr. diz que o “sentido da colonização” ainda era o estigma sob o qual se desenrolava o desenvolvimento brasileiro nos anos 40, Schwarz procura mostrar como nos Oitocentos a influência europeia no pensamento brasileiro tensionou a literatura, fazendo-a assumir problemas e formas que buscassem lidar com ideias-força surgidas em contextos muito distintos da realidade concreta do Brasil. As “ideias fora do lugar” são essas: respostas que surgiram para dar conta de problemas europeus foram sendo, a partir de curiosas adaptações, seleções e arremedos, incorporadas como respostas “cabíveis” apesar da especificidade do desenvolvimento brasileiro.

Simplificando dessa maneira pode parecer que o esforço de Schwarz foi mais o transplante do debate intelectual de outras áreas para a interpretação das letras. Porém  como atestam, aliás, os outros ensaios desse livro , mais do que mover e adaptar um conjunto de questões a um problema distinto, Schwarz foi exímio em ponderar de que forma a literatura respondia a esses dilemas social e historicamente postos. Creio que aí se encontra o coração pulsante da argumentação e da originalidade do autor, pois embora não sejam pólos opositores, literatura e realidade histórica não são simétricos nem regulares. O “terreno” que se interpõe entre o conjunto de experiências concretas do escritor dentro da realidade histórica e a criação literária ficcionalizada é regido por mecanismos e lógicas extremamente complexas, e interpretá-las demanda uma sensibilidade especialmente aguçada para não cair nas enganações do “reflexo” nem tornar-se refém do escritor. E isso Schwarz soube fazer com lucidez e criatividade.

Basta olhar dois ensaios específicos dessa coletânea para dimensionar isso: Cultura e política, 1964-1969; e O sentido histórico da crueldade em Machado de Assis. No primeiro ensaio  “escrito à quente”, como se costuma dizer , Schwarz analisa os caminhos e descaminhos da arte diante dos dilemas históricos colocados, dessa vez, pelo golpe de 1964: o combate ideológico, o momentum político e a difícil dinâmica sócio-cultural nessa conjuntura são algumas das questões que o autor elenca como interlocutores da criação literária, teatral, cinematográfica e intelectual num sentido amplo. Já no segundo ensaio, Schwarz seleciona um dos fios da trama de Memórias póstumas de Brás Cubas (o desenlace do romance entre Brás Cubas e Eugênia) para mostrar como as “soluções literárias” machadianas estavam em estreito diálogo com as dinâmicas sociais do período. Num golpe de perspicácia singular, Schwarz demonstra como características que nos podem parecer universais e autoevidentes, jazem, na verdade, numa sutil mas poderosa relação com a historicidade concreta.

Na relação com aqueles que foram chamados de “os grandes intérpretes do Brasil” (acima mencionados), Schwarz soube nutrir-se de seu espírito investigativo sistematizante e de grande envergadura, o qual pensava a peculiaridade do Brasil enquanto fenômeno histórico complexo, explicável somente nos laivos de totalidade que se pudesse notar, enfocar e dissecar. Daí seu fôlego de investigação. Se As ideias fora do lugar não for suficiente para atestá-lo, voltem-se os olhos para Ao vencedor as batatas ou Um mestre na periferia do capitalismo, que são animados por semelhante força e verve críticas.

Os escritos de Roberto Schwarz, ainda que estejam lastreados numa refinada erudição, não são encriptados ao ponto de ficarem herméticos, pois a cadência de sua argumentação se desdobra com fluidez e espirituosidade, sendo por essas e por outras razões que sua leitura costuma ser um prazer, apesar de demandar atenção e concentração acentuadas.