A literatura israelense, assim como sua cultura e política, esteve constantemente marcada pela preocupação com os conflitos que marcam essa região e o espinhoso histórico que os circunda. Na contemporaneidade, por exemplo, um dos grandes escritores israelenses – que, aliás, ganhou o Nobel de Literatura – é Amós Oz, cuja obra expressa a crucialidade desses conflitos na tessitura mais cotidiana da vida. Oz construiu sua obra em profundo diálogo com sua militância política em torno da paz e da tentativa de encontrar uma solução que não fosse unilateral, mas congregadora (sua obra, não à toa, está, em boa parte, fundamentada no drama da difícil tentativa de deglutir todo um passado belicoso, e construir um horizonte possível de estabilização política e, num sentido mais amplo, existencial).

A literatura israelense, portanto, esteve muito frenquentemente caracterizada pela questão política candente e pelo posicionamento mais intenso e presente de seus escritores sobre os problemas da vida naquele contexto de conflitos, os quais extrapolam em muito a religião.

A despeito da herança que essa literatura propiciou (que pesa muito sobre os escritores de lá) e do exemplo emblemático de Oz (cuja láurea da Academia Sueca deu projeção internacional à literatura israelense), Etgar Keret buscou trilhar suas veredas literárias buscando não incidir tão diretamente sobre essas questões. Não se trata de desviar-se ou evitar a política (nenhuma pessoa que tenha uma existência social pode fazê-lo efetivamente), mas Keret aborda a questão obliquamente, através de investidas em temas mais comuns e cotidianos, que se engendram nos problemas e nos quadros maiores somente em laivos localizados e em irrupções pontuais conduzidas com sutileza pelo escritor.

Para que se possa atestar essas características, basta folhear o livro de Keret publicado pela editora Rocco. A coletânea de contos De repente, uma batida na porta foi publicada no Brasil em 2014, com tradução de Nancy Rozenchan, e traz como personagens justamente pessoas comuns em atividades rotineiras. Keret não tenta emblematizar seus personagens nem dar a eles feições mais “tipicamente israelenses”, mas procura ir, sim, na direção contrária: ele tenta mostrar como os pequenos dramas e dilemas imbricados no dia-a-dia israelense carregam muito de geral ou quiçá “universal”, pois são, boa parte deles, problemas próprios da contemporaneidade.

Não é difícil encontrar situações que confirmem essa interpretação. Em vários contos encontramos personagens que sofrem com a solidão e o isolamento, características muito frequentemente tidas como emblemas da vida moderna. Além desse ponto, o cenário dominante nas histórias é a cidade e os problemas decorrentes da existência urbana, pontos que reforçam a ligação com a realidade presente. E, para além desses dois traços, ainda é possível ressaltar a presença marcante do indivíduo como unidade elementar de todas as histórias. O processo de individuação, que não raro desemboca na ganância, na ambição, no egocentrismo, na solidão no meio da multidão e na sacralização da privacidade (por exemplo), estão muito presentes nos contos de Keret.

Enquanto conteúdo e matéria humana mais diretamente falando, as histórias de Keret carregam fortemente nos traços apontados acima, inclinando-se mais, portanto, a uma abordagem mais cosmopolita. Há a história de um homem que, não conseguindo se relacionar bem com a esposa, procura uma amante e, não conseguindo se relacionar bem com a amante, aposta suas fichas na sociabilidade que desenvolve com seu cachorro. Há também a história de um peixinho dourado que concede desejos ao seu detentor, mas cujo desejo primordial desse era não ser tão solitário. Há, ainda, a história de um homem que simplesmente senta-se nas mesas de um café e começa a dialogar com um estranho diferente a cada dia, assumindo uma identidade distinta em cada ocasião. O interessante, e esse talvez seja o conto mais emblemático da coletânea (a meu ver), é que ele faz isso não pelo prazer perverso do enganar o próximo ou da mitomania, mas em decorrência de não ter uma companhia para compartilhar um café.

Esse conto aponta para outro dos temas recorrentes da prosa de Keret: o cotejo da ficção. É comum que, assim como no conto supramencionado, os problemas decorrentes da existência contemporânea se entrelacem com as preocupações de Keret em perscrutar os significados e sentidos da ficção (e, de certa maneira, as preocupações de um artífice da ficção, o escritor). A fantasia, a imaginação e a ficção, quando aparecem nas histórias de De repente, uma batida na porta, servem não só como elementos da trama, mas também como dispositivos para pensá-la, ela própria, como atividade dotada de sentido humano. E isso, vale ressaltar, sem cair nas armadilhas já-não-mais-originais da metanarrativa.

Como exemplo disso, pode-se analisar o conto que dá título à coletânea. Ele está estruturado da seguinte forma: um contador de histórias encontra-se em sua casa, sentado no sofá com um homem barbudo que lhe pede uma história. De repente, alguém bate à porta e, entrando esse sujeito, pede também ele uma história. O ficcionista-personagem se vê obrigado a desdobrar-se para inventar uma história que agrade o homem barbudo e o sujeito que recém adentrara sua casa (e que não tem cara de muitos amigos), sem colocar-se em maus lençóis por conta dela. A complicação se adensa na medida em que novas batidas na porta introduzem novos personagens e novos desafios ao contador de histórias.

Assim, Keret se debruça sobre a própria ficção, mostrando como ela desperta interesse nas pessoas, mas que, ao ganhar corpo, imbrica o escritor nas suas próprias tramas. A ficção, dessa forma, possui o potencial para acalmar um sujeito belicoso como aquele que bateu à porta, mas exige que o contador de histórias seja hábil para manipulá-la de modo a tocá-lo naquilo que ele possui de humano (salvaguardando-se a si próprio no processo).

Sobre a ficção também é o conto “Terra da mentira”, no qual o protagonista, Robi, tendo sido um mentiroso crônico ao longo de toda a sua vida, se depara com algumas de suas mentiras corporificadas quando adulto. Novamente vemos Keret não se valendo da ficção como um fim em si mesma, mas como um meio através do qual ele busca explorar o caráter de seus personagens, suas reações, seu senso de julgamento e o impacto espiritual de estarem diante do insólito. Esse último conto citado tem um tom leve, mas apresenta cenas e situações perturbadoras, explorando a narrativa límpida, direta e espirituosa do escritor.

Quem sabe essa seja a visão de ficção e literatura que Keret sustenta, e parece ser ela que o escritor buscou respeitar ao invocar os poderes da escrita: não um espetáculo que só faça chamar a atenção sobre si, mas sim que, ao fazê-lo, seja capaz de vincular-se a sentimentos, emoções, problemas, dilemas e dramas reais e humanos. Os quais, precisamente por serem humanos, são capazes de despertar nossa própria solidariedade e sensibilidade. Assim como seus personagens utilizam-se da ficção (da mentira, do enganar, da mitomania, das histórias etc.) para tentar lidar com problemas que lhes afetam, Keret, ao se colocar como criador de ficção, também constrói sua narrativa de modo a tocar os leitores e, sem pragmatismos ou benthamismos, ajudá-los a desenvolver sensibilidade distinta acerca do mundo que os rodeia.