Às vezes, na vida, uma obsessão particular pode nos fazer tomar decisões que assustam os outros, mas que são necessárias para nos satisfazer de algum modo. É o que fez José Luís Peixoto em 2012: “Propus-me a ir à Coreia do Norte e fui”. Dito assim, de modo bem português. O jovem escritor de Galveias, pequena cidade no Alentejo, fascinado a seu modo por regimes totalitários (mas sem concordar com suas políticas), decidiu se juntar a uma excursão para passar cerca de duas semanas no país conhecido por ser o mais fechado do mundo. E ainda escreveu sobre a experiência.

Dentro do segredo, lançado em 2012 em Portugal, é a memória do autor desses poucos dias em território norte-coreano, que foram vividos de uma maneira que poucos de nós, ocidentais, podemos imaginar. O regime fundado por Kim Il-sung, o “grande líder”, em 1948, pela criação da República Democrática Popular da Coreia, se mantém mesmo após sua morte. A chamada “ideia Juche”, baseada no culto à personalidade de Kim Il-sung e seus sucessores, bem como no militarismo extremado, é a responsável pela manutenção do Estado norte-coreano sob essas condições. Todas as decisões tomadas pelo governo são, de certo modo, secretas, até mesmo para a população do país. Daí o mistério todo que Peixoto decidiu enfrentar.

Todo esse interesse por regimes totalitários, revelado logo no início do livro, não surpreende o leitor dos romances de Peixoto. Como se pode notar em Uma casa na escuridão, Livro e outros, a abordagem das relações de poder e violência entre os homens é uma constante na obra do autor, assim como na de outros portugueses contemporâneos. A Coreia do Norte, como se sabe, se encaixa perfeitamente no perfil de uma sociedade regida ao extremo pelo poder, pela hierarquia, pela violência, sem qualquer possibilidade de se alcançar a liberdade. Tentar se ver nessa situação é angustiante, mas com certeza se torna mais real quando a vemos com nossos olhos.  Assim, a novidade de Dentro do segredo é, claro, o apelo à veracidade: é declaradamente um texto memorialístico, crônica de uma viagem do próprio autor. Vemos a Coreia do Norte finalmente, ainda que com os olhos do outro.

Peixoto nos mostra primeiramente toda a preparação, a ansiedade para a viagem desde o ano anterior, em especial a apreensão após a morte de Kim Jong-il, filho de Kim Il-sung e o então presidente da Coreia do Norte. Já em Pyongyang, a capital, o relato se torna mais pormenorizado, afinal a surpresa do viajante se dá a todo minuto, dadas as peculiaridades locais de um regime tão fechado, tão distante da realidade ocidental capitalista. Para além do relato, que, é claro, em si já encerra a opinião daquele que o enuncia acerca de tudo que enuncia, Peixoto se dedica a realmente explicar ao leitor, inclusive com certo arcabouço teórico, o que a Coreia do Norte realmente é para além da especulação da mídia.

Ainda assim, no atual estado da modernidade, é sempre difícil se convencer de que o que um ficcionista nos escreve, mesmo que seja um relato pessoal, não tem qualquer discurso muito bem elaborado e escondido (ou nem tanto). No caso do livro de Peixoto, ele parece nos provocar quase ao anunciar a todo tempo que não deveria escrever aquelas linhas, muito menos publicá-la, afinal esse era um dos termos do contrato da excursão que o levou à Coreia. Também afirma que, no momento da escrita – qual momento? –, acionou um advogado para tratar do caso. De imediato, sentimos certa intimidade, certo conhecimento desse outro segredo do escritor que, a princípio, ainda não sabia como lidar com a vontade de lançar o texto para o público mesmo sem autorização. A dúvida que surge, imagino eu, só pode ser intencional. Os escritores, por vezes, parecem gostar de serem colocado em xeque, de serem desafiados.

O fato é que o livro de Peixoto é incrível no modo como explora a realidade norte-coreana para além da comprovação de tudo que ouvimos a respeito do país. Parece estar realmente aberto a entender o cotidiano dos habitantes, a história nacional, o sentimento dos norte-coreanos diante do governo e do resto do mundo, o constrangimento dos guias turísticos, nomeados pelo governo, diante da falta de explicação sobre algumas dúvidas dos turistas. Conseguimos acompanhar a viagem com tranquilidade, de Pyongyang, a grande capital com grandes monumentos à moda stalinista, até as cidades menores, cada vez menores e mais isoladas, às vezes isoladas dos estrangeiros até o momento em que a excursão lá chega. Vê-se submissão, orgulho, trabalho árduo, pobreza, repressão a todo momento. Sente-se que a humanidade realmente pode tomar as formas mais estranhas possíveis, mas que nossos problemas são, em geral, os mesmos.

José Luís Peixoto tem consciência disso tudo. Mostra sempre pela escrita que seu esforço é grande, que sua cabeça não consegue lidar com toda aquela informação e que nunca poderia viver ali, isolado, longe dos filhos, com os quais fala às vezes pelo telefone do hotel. O receio do grampo telefônico existe, já que se tem medo do que falar. Apesar disso, nota como tudo, até a comida que consome, é diferente daquela que os norte-coreanos consomem. É sempre lembrado que é somente um turista, que não vive de verdade ali. Está na Coreia do Norte, mas apenas em partes.

Estar dentro do segredo é, então, tentar entender por que existe tanto mistério nessa pequena nação, inclusive para aqueles que lá nasceram. A devoção cega aos líderes locais, sob formas de um fanatismo religioso, estimula o estranhamento do estrangeiro, mas também pode fazê-lo se afastar do outro. Peixoto parece se esforçar para evitar isso ao máximo. É necessário se manter dentro, aceitar tudo aquilo e procurar compreender. Ainda assim, como estrangeiros, nunca podemos deixar de estar fora de tudo isso, longe daquela realidade, no caso, fora do segredo.