Os contos de Ódio, amizade, namoro, amor, casamento, da escritora canadense Alice Munro, abordam, na maioria dos casos, um curto período da vida de uma pessoa comum. Quase sempre é uma mulher. Muitas vezes ela se dedica ao lar e ao marido, ainda que o companheiro faça o antigo estilo sou-homem-não-tenho-sentimentos (pode ser, também, que tenha aderido à onda hippie, o que nem sempre se traduz num relacionamento mais cúmplice). São histórias, enfim, do cotidiano canadense do último meio século. E no entanto, apesar da preferência por figuras simples e locais, a obra de Munro se distingue pela universalidade.

A princípio, pode parecer que o alcance dos seus personagens vem sobretudo da facilidade da escritora em recriar perfis psicológicos. De fato, é impressionante observar que bastam alguns parágrafos para que o leitor entenda quem são as pessoas envolvidas na trama, quais são suas preocupações, quais os conflitos de interesses entre elas, em que proporção de forças se encontram etc. Para fins de comparação, entendam-se duas ou três páginas de Munro como equivalentes a dez de um romance comum em termos de ambientação.

Mas a escrita de Munro vai além. Vale observar, por exemplo, que os acontecimentos narrados se concentram sobretudo no presente psicológico dos personagens. Do passado e, de vez em quando, do futuro, a escritora resgata apenas o necessário para que o leitor perceba o peso das experiências representadas. E no entanto, ao abrir mão de grande parte da vida desses personagens – e talvez com efeito contrário ao que se poderia esperar –, ela fortalece ainda mais a caracterização, pois mostra que apenas a compreensão parcial, vinculada no tempo, é possível.

Além disso, essas pessoas comuns ganham igualmente em verossimilhança na medida em que os fatos centrais da narrativa quase sempre não são sequer acontecimentos de grande impacto – às vezes basta a lembrança de um vizinho de infância. São eventos significativos, certamente, mas numa escala subjetiva de cada personagem, que, no entanto, transparece muito claramente ao leitor. É preciso compreender profundamente essas pessoas, mostra a escritora, para extrair com claridade apenas um instante.

Na conjunção de tudo isso, percebe-se que a universalidade de Munro vem de algo mais amplo, que ultrapassa a mera caracterização psicológica. A temporalidade e a simplicidade dos acontecimentos narrados aponta para um modo diferente de lidar com as experiências, pelo qual os elementos que concentram a nossa atenção nem sempre são os mais óbvios. Muitas vezes, a reflexão sobre pequenos eventos, como a visita de um parente ou um encontro fortuito com um estranho, são mais importantes para nossa autodefinição que uma “grande mudança”, como um emprego novo. Consequentemente, também a nossa rememoração não ocorre como um simples desfiar – ódio, amizade, namoro, amor e casamento –, mas se prende a momentos específicos e, quase sempre, triviais. Por isso, conforme essa lógica, o poder da narrativa de Munro estaria na revelação dos processos da nossa própria memória.

A resenha da Taize, que apareceu bem antes aqui no Posfácio, fala um pouco de todas as histórias do livro, então considerarei cumprida essa etapa e passarei direto ao comentário de uma característica geral, que fica bem evidente no panorama dos contos: a presença das mulheres.

As mulheres de Ódio, amizade, namoro, amor, casamento pertencem àquele período das sociedades ocidentais (porque evidentemente em outras partes ainda prevalece esse estado de coisas) em que eram obrigadas a conviver com homens de caráter áspero e truculento. A visão comum sobre essas filhas e esposas era, além disso (ou por isso), a de que fossem mais ou menos desprovidas de vida interior. Valia, especialmente, reconhecê-las pela resiliência e pela submissão aos cônjuges e à família. Mas nada disso serve para as histórias de Munro, cujos personagens mostram consciência e vontade própria, ainda que suas ações se circunscrevam, por sua condição social, a questões cotidianas.

Não à toa, uma outra marca frequente nos contos deste livro é a descoberta de um aspecto oculto de uma pessoa conhecida. Em “O que foi lembrado”, por exemplo, sugere-se, por alguns poucos comentários da idosa tia Muriel, que ela teria levado uma juventude de liberdade sexual. Já em “Viga e coluna”, Poly, retratada ao longo do conto como uma garota desprovida de atrativos, desperta, ao final, o interesse do jovem vizinho, Lionel. São mulheres que surpreendem o olhar narrativo, em ambos os casos, e desafiam o papel em que foram colocadas.

Mas de todos os contos, acredito que o mais cativante, tanto pela originalidade quanto pela condução sensível da narrativa, seja o último do livro, “O urso atravessou a montanha”. A história, contada por um homem, começa mostrando a dificuldade de se lidar com o envelhecimento e a separação, à medida que sua esposa inicia um progressivo enfraquecimento mental (Alzheimer, aparentemente). No entanto, há uma inversão sublime a meio caminho, quando o marido – que, aos poucos se descobre, embarcara na liberalização dos costumes dos anos 70 e traíra repetidamente a esposa – percebe que ela se apegou carinhosamente a um companheiro do asilo. Assim, ao longo de mais ou menos cinquenta páginas, Alice Munro rebate com autenticidade qualquer expectativa do leitor alimentada por clichês.

Afinal, depois da grande exposição recente, pretende-se saber: o que faz de Munro uma escritora digna do Nobel? A acuidade psicológica, o desvelamento da memória, a distinção dada às mulheres e às pessoas comuns são apenas alguns ingredientes. Outros mais seriam possíveis, entre eles a precisão poética com que são escolhidas todas as palavras, precisão que às vezes se perde, inevitavelmente, na tradução. De qualquer modo, já são motivos mais que suficientes para reconhecer uma influência duradoura na literatura.