Pernas ou salsichasMuçarela de búfala ou ovo de cordonaHipster ou cobrador? A internet – em especial, a plataforma de blogging chamada Tumblr – é pródiga nessas divertidas polaridades.

É provável que o livro mais Tumblr da literatura contemporânea brasileira seja o Luzes de emergência se acenderão automaticamente, de Luisa Geisler – a não ser que, a fim de cumprir os requisitos do apelido, sejam necessárias fotos no meio da narrativa; nesse caso, o título iria para o excelente Esquilos de Pavlov, de Laura Erber, ou As fantasias eletivas, de Carlos Henrique Schroeder. A definição – “o livro mais Tumblr” – não é minha: creio ter ouvido de alguém. Como tal, em dado momento o romance se abre para uma interpretação potencialmente tumblrística, se me permite a expressão.

Isso ocorre quando um amigo do narrador resolve dar seus pitacos sobre um desses temas universais, sobre os quais nos julgamos gabaritados para opinar quando bêbados ou prestes a dormir: o amor. Diz:

Hein, tem uma cena em que esse cara fala pra essa mulher que amor é dormir junto. (…) Tu concorda?, ele perguntou. Acho que sim, eu disse.

Ike, o narrador de 93% do romance, não dá muita trela1. Mas depois retruca – ou algo assim:

p.s.8 (não sei se falei (ou só pensei) isso) Amor é andar de mãos dadas, meu velho. Mãos dadas é a coisa mais ridícula que um casal pode fazer. Cachorro e dono. Não é prático, alguém puxa prum lado, tem um ritmo estranho de caminhar. Isso é amor. Amor é pouco prático, desconfortável (mas tu não quer soltar). Porra.

 

Em sendo o narrador, ele tem mais chance de nos convencer de seus argumentos: pode dar exemplos pessoais e se estender, post-scriptum após post-scriptum (para quem ainda não sacou a razão de ser do “p.s.” da citação anterior, os 93% do livro referidos como escritos pelo Ike são cartas deste para um amigo em coma). Lógico que ele usará isso a seu favor:

p.s.9 eu e a Manu andávamos de mãos dadas. Até no verão no calor de uma praia meio bosta. E a gente tropeçava. E ela andava devagar, e eu arrastava ela que nem esses cachorros que odeiam banho.
p.s.10 de uma certa forma, um relacionamento são duas pessoas que se recusam a desistir uma da outra. Duas pessoas igualmente ferradas, claro.

 

O que de certa forma dá um ponto final à discussão: mesmo que ele tenha apenas pensado, mesmo que o exemplo pessoal esteja num p.s., não na conversa; para o leitor, é como se a questão chegasse a um consenso. Não era muçarela, era ovo de codorna. Não era amor, era cilada.

*

Contudo, o ponto final não é o bastante para um leitor obsessivo. Isso porque uma das passagens mais memoráveis do romance anterior da escritora – Quiçá – dá maior ênfase ao outro lado da moeda. São duas das páginas que se intercalam com a narrativa principal (essas, em especial, podem ou não ter a ver com a história de Arthur, um dos protagonistas), as mesmas que, sempre que posso, faço os amigos lerem na livraria, antes de comprarem o livro.

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“Eu queria estar ali pro ataque epilético e pro trauma, pô.” serve de contraponto. Se um dos argumentos de Ike para as mãos dadas é a sujeição de um dos lados ao outro2, quer maior sujeição do que se deitar ao lado de alguém que pode acordá-lo no meio da noite com socos e chutes, dormindo3?

A questão permaneceu na minha cabeça de modo que passei a colecionar algumas das referências a ambas as atividades que via em minhas leituras. Compilei os trechos para essa coluna-tumblr. Temos aqui:

* o casal visto pela janela, em “Luzes acesas”, uma das crônicas de O louco de palestra e outras crônicas urbanas, de Vanessa Barbara;

Há outro casal que veste o pijama às quatro da tarde, um pijama engomado de gola e bolsinho, listrado ou xadrez. “Amor, eles já estão de pijama”, diz a mesma vizinha, tomando certas providências quanto ao próprio vestuário.

 

* as reflexões de Valderez – narradora e protagonista de Por escrito, novo romance de Elvira Vigna – que valem ser citadas pelo modo como descreve o passo a passo do dormir junto, logo no comecinho do livro;

É primeiro de janeiro e lembro disso por causa do passeinho que fizemos de manhã. Dormi na tua casa. Nesse dia ainda chamo tua casa de tua casa embora saiba que vá virar nossa casa logo depois. Essa, a que vai, não hoje, eu aqui escrevendo, mas a qualquer momento, virar tua casa outra vez.
Dormi na tua casa de véspera porque é isso que faço em caso de viagens, embora não assuma.
“Dorme aqui, te levo.”
“Não precisa.”
“Ah, precisa.”
“Bem, o.k.”
“O.k.”
O diálogo mais uma vez repetido e mais uma vez as risadinhas, a minha e a tua, no entendimento de que não se trata só de carona para o aeroporto, mas de trepada, um queijo, tomates, vinho, o braço em cima de mim pelo menos nos primeiros minutos depois de a luz apagada, eu gostando do teu braço em cima de mim, o olho aberto adivinhando o teto por alguns minutos, talvez muitos, até que me viro, agora o olho aberto adivinhando a parede ao lado, umas apagadas rápidas num sono que nem parece sono. E a claridade da futura manhã. Você não fecha a persiana, então não me preocupo, chegam rápido, as manhãs na tua casa. São insônias confiantes, essas.

 

* aliás, ela também fala sobre mãos dadas – só não lhes dá muita atenção;

E no meio disso tudo teve mais uma trepada, e as andanças foram em geral de mãos dadas pelas ruas sem calçadas (…)

 

* o que pensa Copi – personagem-essência do romance As fantasias eletivas, de Carlos Henrique Schroeder – a respeito de andar de mãos dadas e da falta de outras demonstrações públicas de afeto;

Você não vê mais as pessoas namorando na rua, quase não vê o beijo, o afago, aquele abraço prolongado. Apenas o mecânico e desgastado andar de mãos dadas. (…) Nos permitimos exibir nossos carros, a porra desses tijolões, os celulares, mas temos vergonha de fazer um carinho, dar um beijão prolongado na nossa companhia em plena rua. É o claro isolamento do afeto, do toque, do gesto.

 

* Angélica Freitas, por sua vez, dá um soco de realidade ao lembrar que, mais importante do que dormir com alguém, é bom saber dormir consigo mesmo (ou melhor, mesma; eu é que estava adaptando esse poema de Um útero é do tamanho de um punho);

eu durmo comigo/ deitada de bruços eu durmo comigo/ virada pra direita eu durmo comigo/ eu durmo comigo abraçada comigo/ não há noite tão longa em que não durma comigo/ como um trovador agarrado ao alaúde eu durmo comigo/ eu durmo comigo debaixo da noite estrelada/ eu durmo comigo enquanto os outros fazem aniversário/ eu durmo comigo às vezes de óculos/ e mesmo no escuro sei que estou dormindo comigo/ e quem quiser dormir comigo vai ter que dormir ao lado.

 

* e, por fim, não teríamos como findar um debate sobre mãos dadas sem dar aquele golpe baixo que é citar o famoso poema de Drummond;

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

 

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

 

Li, li e reli e treli. Perguntei a opinião dos amigos, que se dividiram. Tem quem ache romântico e quem pense ser perigoso dormir com outra pessoa4. Tem quem considere nojento o suor produzido em poucos minutos de mãos dadas e quem o veja como um negócio muito do bonitinho5, um ato de desprendimento – quiçá, um ato político.

E você? O que acha?

  1. “(porque a gente nunca falou de amor (porque falar de amor é pedir pra conversa virar uma discussão que vai dar sono, é coisa de guria, não tem uma resposta pra essas coisas (porque amor é amor e pronto (e eu nunca achei que fosse discutir amor com um cara)))).”
  2. Esse é um dos principais motivos para uma amiga se recusar a pegar na mão de qualquer um de seus namorados. Semelhantemente, ela não usa aliança, por ser demarcação de território em demasia.
  3. Não sei quanto a hoje em dia, mas, quando adolescente, eu era um famoso socador. Sei disso pelas reclamações nos cafés da manhã em Porto de Galinhas: casa de praia lotada, jogavam os guris todos para dormir em colchonetes espalhados na sala de estar, numa razão de 5 caras para 3 colchonetes.
  4. Como numa crítica que li ao filme Garota Exemplar: “His films raise the question of whether Fincher is even more afraid of the one person closer than a neighbor: the one you live with, sleep next to, but still don’t fully know.”
  5. Tipo eu, após dar meu primeiro beijo na boca, resolvendo que seria legal sair de mãos dadas com a guria pelo shopping center. No final das contas, só levei-a a ter expectativas que resultaram em choro e ranger de dentes.