Ufa. Deu.1

Achei que logo depois de dar, a vida compensaria todo o tempo em que a adiei. Não foi bem assim. 2

Ainda bem que – como “as coisas que restam” da crônica de Vanessa Barbara – houve a conjunção de uma série de fatores, ideais para a desenferrujada de que eu precisava: uma soda italiana, uns filminhos no cinema, uma noite agradável, um brinde à militância.

E, para fechar o ciclo que me permitiu afirmar “tô outro”, uma palestra intitulada “A imagem dos movimentos sociais na mídia”. Nela, dialogavam uma representante do movimento negro, um líder dos sem moradia, uma feminista (um expoente na Marcha das vadias) em quem votei nas últimas eleições e um deputado federal.

Metade de mim adorou, sem precisar de mais nada. A outra metade funcionava em segundo plano, associando a mesa-redonda às minhas últimas leituras: os moradores de rua ao que li em Quarenta dias, de Maria Valéria Rezende; a moça que falava sobre o uso do turbante à Chimamanda Ngozi Adichie e seu maravilhoso Sejamos todos feministas, lido numa sentada; o congressista ao seu próprio livro 3, à queerlist pessoal que tenho montado e a do que eu falo quando eu falo de Bernardo Carvalho; e a mulher que falava das desigualdades (até de voz) entre gêneros às escritoras lidas no ano.

Um dos pontos altos foi quando Jean Wyllys deu uma aulinha de história (importante para, entre outras coisas, apontar a importância, especialmente na sociedade brasileira, da ideologia judaico-cristã4 para o racismo – o tratamento de indígenas e negros –, o sexismo – vinculado ao fundamento patriarcal da religião – e a homofobia – intimamente ligada ao machismo, pois que surgida nessa eterna vigilância das fronteiras entre gêneros) e fez algumas notas sobre a cultura – nosso pensamento, aquilo que nos diferenciaria dos animais, seria composto de representações – pictóricas, escritas, audiovisuais.

Não teve como não me lembrar da principal característica apontada pelos críticos para a produção literária contemporânea: a diversidade.

Tenho tentado diversificar minhas leituras. Apesar dos pontos cegos5 que constantemente me estapeiam – “você não nos lê!” –, tenho tentado. Teve uma fase, por exemplo, em que me interessei por livros com narradores “normais”, o que me permitiu descobrir um livro ótimo (O segundo tempo, de Michel Laub) sobre algo que detesto (futebol). Essa fase passou. 6

Quem acompanha a coluna, sabe: comecei a ler mais poesia, mais contos, mais autores estreantes, mais mulheres. Para o ano que vem, já estou planejando ler mais scifi – #leiascifi2015 – para ver se acabo com meu discurso invejoso (a figura explica).

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“Tem histórias que precisam ser mais contadas que outras.”: a citação é de Ali Smith, mas poderia ser de uma palestra da Chimamanda. Ou um apelo do projeto que implora por livros mais diversos. Ou uma nota no meio duma crítica a um dos filmes que vi recentemente no cinema – Garota Exemplar7, Festa no céu8 e Os Boxtrolls9, um mais feminista que o outro. Ou um argumento em favor de uma edição recente da Mulher Maravilha.

Na dúvida entre tempo bom ou ruim, eu creio que logo logo deixa de ficar nublado.

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Não dá pra ler, mas na minha camiseta tá escrito “O sertão vai virar mar”, junto da figurinha do Yellow Submarine.
  1. Ao menos até a defesa do mestrado, não mexo mais na dissertação tão procrastinada, principal motivo para eu deixar livros pela metade e escrever colunas mais curtinhas (o que inclui esta), aquele texto que só me permitia ficar cinco minutinhos na internet e do qual adaptei um pedacinho para transformar em uma coluna.
  2. Deu um sono. E com ele veio um desânimo. E com este veio aquele desesperozinho de que esse brinquedo não quisesse mais funcionar, desacostumado que estava de que dessem corda nele.
  3. Todo cheio de orelhas, diversas vezes citado na dissertação.
  4. O que explica a minha empolgação nesse começo de leitura de Exorcismos, amores e uma dose de blues, de Eric Novello: o cara escreveu um romance cuja ambientação simplesmente ignora a existência do cristianismo.
  5. E são tantos os fatores a serem levados em consideração. Às vezes, a gente força prum lado e percebe que tá oprimindo o outro – mais ou menos como quando Jean falou sobre solidariedade e disse que gostaria que o movimento negro fosse menos homofóbico, o movimento gay fosse menos misógino e o movimento feminista desse mais oportunidade à voz das prostitutas. A gente vai ficando mais chato, talvez – fica feliz por um filme ter uma boa representativa feminina, com personagens complexas, mas reclama pela quase total ausência de negros na obra –, mas ninguém disse que seria fácil.
  6. Especialmente depois da última Copa do Mundo. Não teve como esquecer que o “normal” seria gostar dessa bagaça. E daí para perceber que o futebol não precisa da minha ajuda para não ser esquecido foi um pulo. O que me deixou com uma baita indisposição para ler – ao menos num futuro próximo – o elogiadíssimo O drible, de Sérgio Rodrigues.
  7. Isadora acabou de fazer uma crítica para o filme. Talvez eu faça uma também, para compensar a ausência de spoilers na resenha do livro.
  8. Uma animação dirigida por um mexicano, com amplo elenco de vozes de atores do país, que põe o Méxino no centro do universo (literalmente, com direito a um bigodão imenso). Não sei em que medida é representado um México autêntico (meu contato com as representações do lugar podem ser bem estereotipadas) ou algo mais no estilo Rio (uma animação também dirigida por alguém do país retratado, o que não foi o suficiente para diminuir a carga de estereótipos do filme – nada contra, adorei), mas o filme se vale de uma boa mistura de aulinha cultural, clichês e negação destes. A questão da tradição é um dos clichês mais fortes, muitos deles negados aqui e ali. A mulher bela que deve ser protegida (e disputada por dois homens) e a ancestral morta em cuja homenagem certas atitudes devem ser tomadas são dois desses clichês. Dá gosto em ver o que essas crianças estão vendo hoje em dia – Valente e Frozen são dois bons exemplos disso.
  9. Ok, feminista talvez seja meio forte para um filme que – há controvérsias – não passa no Teste Bechdel (a situação é muito parecida com a de A invenção de Hugo Cabret). Mas o filme mostra: como é difícil ser mulher (e criança) num mundo dominado por homens (e adultos); como vilões e mocinhos são adjetivos fortemente relacionados com a história dos vencedores – que pouco ligam para os oprimidos; e como a desculpa do “estava apenas seguindo ordens” é ridícula e não livra ninguém do conflito ético. E a cena final, após os créditos, é nada menos que maravilhosa – mais profunda que muito livro de 300 páginas que li por aí.