Assinado pelo inglês Stephen Daldry (Billy Elliot, 2000 e As Horas, 2003), Trash – A Esperança Vem do Lixo foi a megaprodução escolhida para encerrar o Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro. Com a presença dos atores Wagner Moura, Selton Melo, Rodrigo Santoro, do diretor e de outros convidados, o filme marca uma importante parceria no mercado audiovisual brasileiro, o encontro entre a estrangeira Working Title e a nacional 02 produções, em que Fernando Meirelles (Cidade de Deus, 2001) é um dos sócios.

O filme é baseado no livro homônimo de Andy Mulligan, que não especificava a cidade ambiente. O Rio foi escolhido, de acordo com Stephen e com o roteirista Richard Curtis (Simplesmente Amor, 2003), tanto pelo visual exótico, que choca os olhos pela proximidade das discrepâncias, quanto pela ascensão histórica que permite pela primeira vez que zonas outrora fechadas pelo tráfico sejam desvendadas e exibidas. Justamente por isso, pode-se dizer que um dos trunfos da produção foi sair dos lugares-comuns dos cenários paradisíacos, evitando cenas, por exemplo, em Copacabana, no Cristo Redentor ou no Pão de Açúcar – um erro fácil de cometer, o do encantamento pelos cartões postais da cidade, vide Rio, eu te amo, um péssimo exemplo de filme-cenário.

A história acompanha a trajetória de três garotos, Rafael, Gardo e Rato (Rickson Tevez, Eduardo Luis e Gabriel Weinstein, respectivamente, todos amadores, selecionados em comunidades, no melhor estilo Cidade de Deus), que encontram no lixão onde trabalham uma carteira misteriosa, contendo uma chave e um código escondido num cartão de jogo do bicho. Logo esses meninos se veem na mira da polícia corrupta, metidos numa perigosa trama envolvendo um importante político local.

Confesso que o resultado final me surpreendeu. Sentei na poltrona como raras vezes sento: desanimado, esperando um filme excêntrico, tal qual Rio, eu te amo, com uma história sem pé nem cabeça feita por estrangeiros alienados. A culpa disso vem em grande parte pelo trailer mal construído, que vende o filme como um novo Quem quer ser um milionário? (Danny Boyle, 2008), o que muito me preocupava, pois irremediavelmente seria raso, culturalmente achatado, se pensasse que Índia e Brasil são o mesmo só por fazerem parte do mesmo bloco econômico e terem dificuldades e desigualdades similares.

A fotografia de Adriano Goldman também contribui para um receio a priori, pois utiliza-se quase que da mesma palheta de cores de Antony Dod Mantle, fotógrafo de Quem Quer Ser…, com seus amarelos intensos, muita cor de terra e o moreno das peles dos protagonistas. Falando com Deuses, projeto de Guilhermo Arriaga que trata das relações religiosas e místicas em diversas partes do mundo, através de uma dúzia de segmentos guiados por diretores diferentes (em breve, crítica aqui no Posfácio), é um bom exemplo de como sair desse lugar comum e homogeneizante: os diretores Hector Babenco, do segmento brasileiro O Homem que Roubou um Pato, sobre a Umbanda, e Mira Nair, de God Room, sobre o Hinduísmo, apresentam colorações muito distintas justamente porque atentos ao que seus cenários ressoavam, sem ideias teimosas sobre as cores da cidade.

Sobre outros aspectos de Trash, é apenas justo dizer que o trio de protagonistas apresenta um resultado fantástico. Os meninos são engraçados e autênticos, sem nenhum dos cacoetes, por exemplo, de Selton Mello, que interpreta o policial Frederico, vilão da trama. Embora o ator diga que o filme fez renascer seu interesse por atuar1, ele, que ultimamente tem se dedicado mais à direção, apresenta aqui um dos piores resultados de sua carreira, intensificado por falas cheias de efeito e afetação, construindo um personagem exageradamente maquiavélico.

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Selton Mello como o policial vilão Frederico é um dos pontos fracos da trama.

Das coisas bem exploradas por esse filme está a denúncia da endêmica corrupção política e policial, atingindo um resultado poucas vezes conquistado por produções nacionais, de onde se espera, justamente pela proximidade, mais legitimidade. Alemão, recente filme de José Eduardo Belmonte sobre a operação policial no maior complexo de favelas do Rio de Janeiro, é um exemplo da má abordagem do tema. Há também produções que souberam atingir o cerne da questão, sendo Tropa de Elite (José Padilha, 2007) talvez o caso mais emblemático. Trash atinge o meio terno: seu sucesso não é estrondoso, pois a questão nunca é aprofundada, mas é eficiente ao mostrar uma corporação instrumentalizada por interesses escusos, geralmente do poder político, além de revelar cruamente sua violência numa cena de tortura numa viatura policial belissimamente executada 2.

Stepan Nercessian é o deputado corrupto Santos3, que foi enganado por seu braço direito, José Ângelo (Wagner Moura, em papel pequeno), e agora fará de tudo para recuperar os R$10 milhões e as provas que podem incriminá-lo. Provas estas que caem justamente nas mãos de três meninos miseráveis de um lixão da periferia carioca. Analisando a trama, seu grande problema é o excesso de voltas e reviravoltas e cenários por onde passam os garotos: a chave achada na carteira leva a um armário na Central do Brasil, que contém uma carta, que leva a uma penitenciária, onde recebem uma Bíblia, que os guia a um código no jogo do bicho, que revela um número de telefone, que é de um cemitério, que leva a um túmulo, onde encontram a menina Pia, que até então não tinha aparecido na história.

Esse arco deixa o espectador exausto, e aparentemente o roteirista também, que perde os rumos da história justamente no momento em que aparece Pia (Maria Eduarda), desnecessária à trama. Por um momento, pensa-se que a menina é uma aparição espiritual no cemitério, transformando esse thriller policial em algo como Nosso Lar4. Logo descobrimos que não se trata disso, mas a amarração final do roteirista Richard Curtis também não é muito melhor.

A trama da caçada à carteira resolve-se bem, mas logo cai na pieguice da lição de moral. Os meninos transformam-se em detonadores de manifestações públicas, tais quais aquelas de junho do ano passado. Os protagonistas fogem para uma vida comunitária à beira-mar, coisa meio difícil de se acreditar, e há espaço até para uma mensagem ecológica, quando Pia joga uma latinha de refrigerante no lixo reciclável. Por fim, os americanos na trama (Martin Sheen como um padre alcóolatra e Rooney Mara como uma assistente social) aparecem como salvadores dos oprimidos, completamente bons.

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O diretor Stephen Daldry com os atores americanos Rooney Mara e Martin Sheen. O filme peca quando pende a lição de moral.

Trash – A Esperança Vem do Lixo talvez seja a maior produção audiovisual já realizada no Brasil com participação da equipe local. A importância de seu diretor para o Cinema contemporâneo e o reconhecimento de outros nomes da equipe técnica e do roteirista trazem uma visibilidade que é boa tanto para o Brasil, quanto ao nosso Cinema, talvez até estimulando coproduções futuras, coisa de que o Cinema nacional precisa urgentemente, a exemplo da Argentina. Justamente por isso o filme tem de ser visto com parcimônia, problematizando seu senso estético e seu roteiro, uma vez que feito por pessoas que não são daqui, tampouco vivem a realidade nacional. No fim, Trash tem mais pontos positivos do que inicialmente esperava, mostrando até certa deferência ao Cinema nacional, com cenas que homenageiam Cidade de Deus, Central do Brasil (Walter Salles, 1998) e o gênero favela movie. Ainda assim, fica aquém de outras boas produções nacionais e certamente do que ainda pode ser realizado pelo Cinema brasileiro.

  1. Fonte: IG , visto em 09 de outubro.
  2. É sabido há tempos que a polícia do Rio é uma das mais violentas e corruptas do Brasil. Para mais, leia a crítica dupla que aborda o tema, clique aqui.
  3. Curiosamente o ator tentava a reeleição ao cargo de deputado federal neste ano, pelo PPS, mas não teve êxito.
  4. Filme espírita de Wagner de Assim, 2010, baseado no livro de Chico Xavier.