A verdade é que seria muito mais fácil se cada um tivesse o seu dragão. Nada mais de vestibulares, nem empregos, nem dúvidas morais sobre a sonegação de impostos. Nossas vidas seriam repetidas versões do roteiro que aprendemos aos seis anos, a saber: uma caverna escura onde o mal se oculta, uma princesa aos berros (ou “inocente em perigo” equivalente), um sábio conselheiro e uma espada mágica para salvar o reino. Faltaria só emoldurar o final feliz em estilo art nouveau.

Imagine a paz de espírito quando você finalmente retirasse a espada ensanguentada do corpo da criatura destruidora e vil, enquanto o sol brilha e o vento balança seus cabelos. Nos tempos modernos, valeria até uma selfie com o cadáver do monstro ao fundo, a ser vinculada nas redes sociais com frases de autoafirmação como “missão cumprida” ou “quem é o seu rei agora?”.

Mas provavelmente é tarde demais para isso. “Onde estão os direitos dos animais?”, você inevitavelmente pensaria, olhando para os lados à procura dos agentes do Ibama. Ou então, frente a frente com a besta que o próprio Destino lhe reservou, ainda assim seria tomado por uma insegurança paralisante, ao considerar que talvez tenha faltado um pouco mais de diálogo na história – mesmo um arqui-inimigo deve ter direito a opinião.

Pra quem tem mais de doze anos, a hesitação no uso das armas é normal. Afinal, fomos criados nesse pedacinho de todas as experiências imagináveis chamado vida real contemporânea, que se caracteriza por uma profunda complexidade ética. Somos treinados desde pequenos nas provocações silenciosas entre irmãos, nos empurra-empurra dos pátios na hora do recreio e nas discussões que começam pacificamente e terminam com alguém gritando “você é igualzinho a sua mãe!”. Este é o nosso mundo, cheio de terríveis armadilhas morais, como achar uma roupa mais barata na loja de departamentos apenas para ler, escrito na etiqueta, “Made in Pakistan”.

Os escritores da vida real se debruçam com frequência sobre os enredos derivados dessa tensão moral inerente. São exímios em transpor para a ficção sobretudo o polo negativo formado por arrependimento, culpa e remorso. Para citar apenas um exemplo: Patrick Modiano, último ganhador do Nobel, que retorna em suas obras ao tumultuado período da ocupação nazista na França.

Por tudo isso, existem nas histórias fantásticas pelo menos duas maneiras pelas quais os dragões, aqueles tradicionais, que são encarnações do Mal e se confundem na Idade Média com a figura do diabo, têm a sua utilidade. A primeira, mais óbvia, é simplificar as discussões. Talvez o enredo de O Hobbit, por exemplo, pudesse ser resolvido em um grande tribunal, presidido por Gandalf (é claro), em que Smaug e os anões exporiam, cada um a seu tempo, os respectivos argumentos quanto à propriedade do tesouro de Erebor – ao que o leitor seria perdoado por eventuais cochilos entre o quarto e o quinto embargo de declaração.

Mas os dragões são úteis também por um segundo motivo, possivelmente mais importante, adaptado de uma ideia de G. K. Chesterton. Dizia ele que a lição implícita em todo conto de fadas está na possibilidade de enfrentar e vencer o Mal1. Digo mais: todo conto de fadas ensina que é possível identificar o Mal e, logo, o papel que cabe ao herói. Para nós, habitantes da confusa vida real, é um passo enorme, e um grande alívio, acreditar numa distinção assim, clara e definitiva, mesmo que limitada a um conjunto pequeno de situações.

O problema é que quase todo mundo quer a espada mágica. Na roupa de dragão, ao que parece, faz muito calor.

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Caí numa dessas armadilhas éticas nos últimos tempos. E o gatilho foi um livro.

Desde o anúncio dos indicados ao prêmio Hugo deste ano, tive interesse em folhear as Grimnoir Chronicles de Larry Correia. A história se passa no ambiente de espionagem do período pré-Segunda Guerra – com o acréscimo de superpoderes. Algo como Dick Tracy encontra os X-Men. Hard Magic, o primeiro livro da série, estava bem próximo do topo da minha lista de leitura quando encontrei isto.

A discussão é enorme, faço aqui um resumo: Alex MacFarlane, articulista do Tor.com, escreveu um manifesto estimulando a comunidade de ficção científica a ousar mais na questão dos gêneros (mais especificamente, ela pregava o “fim do gênero binário como padrão”); Correia então respondeu com um longo post em que defendia a supremacia do entretenimento sobre qualquer tipo de pauta ideológica.

Ambos os posicionamentos são razoáveis. O que incomodou a muitos, inclusive a mim, foi a maneira extremamente grosseira com que Correia se referiu à articulista, sem sequer utilizar os pronomes corretos ao se referir a ela (him ao invés de her etc.). Seus argumentos são memoráveis pela arrogância. Meu favorito – que passei a repetir para fins de paródia – vem de um apelo à própria autoridade, com base na posição que ocupa no topo da pirâmide financeira dos escritores: “I am the 1%” (ou “Eu estou no 1%”).

Numa situação como essa, me pergunto: é válido boicotar os livros de Correia? É injusto desejar que nem um real do meu dinheiro siga para essa pessoa?

Discussões assim aparecem o tempo todo em diferentes campos da arte e atraem multidões dispostas a assumir rapidamente um lado favorito das trincheiras. Dizem que os livros de Correia não têm traços excepcionalmente discriminatórios. Não se trata, portanto, de julgar as obras, e sim o caráter do escritor – o que, admito, já complica bastante as coisas. Nem todas as leituras são precedidas de investigações a respeito dos antecedentes e das opiniões dos respectivos autores, então o que garante que não estamos o tempo todo contribuindo com outros que nos seriam muito mais desagradáveis?

Talvez alguém observasse que não haveria tantos problemas se fossem abandonados todos os contemporâneos (também chamada de solução zumbi, porque não faz mal se a pessoa já estiver morta), mas ainda assim é possível citar pelo menos um caso recente em que essa alternativa seria insuficiente.

Mais de uma vez nos últimos anos ressurgiu uma discussão cujo foco é um troféu, mais especificamente, o semblante de H. P. Lovecraft utilizado nos prêmios do World Fantasy, um dos principais da ficção especulativa. Ocorre que o criador do mito do Cthulhu foi também, ao que hoje se sabe, um defensor da superioridade racial (ou, no mínimo, cultural).

Em 2011, quando a escritora Nnedi Okorafor se mostrou insegura quanto ao tratamento adequado a ser dado ao prêmio (que recebera pelo romance Quem teme a morte), vários escritores ofereceram conselhos sobre a questão. China Mièville mantém seu Lovecraft voltado para a parede, como que de castigo pela eternidade. Já Nalo Hopkinson prefere encará-lo de frente, em desafio ao preconceito. Outros acorreram a lembrar que o mestre do horror, além de pertencer a uma época em que o racismo era largamente tolerado, teria expressado, mais tarde na vida, arrependimento quanto às opiniões juvenis.

Quanto a mim, com o risco de ser injusto, não lerei Correia. Quanto ao World Fantasy, digo apenas que é preciso admitir que no final tudo seria mais fácil se, como várias pessoas sugeriram, trocássemos o busto humano pela efígie de um dragão.

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Algumas leituras

Em setembro saíram mais duas histórias muito boas do escritor Seth Dickinson, que acumula cada vez mais créditos entre a novíssima geração da ficção especulativa. Além do interesse por temas mais conceituais, seus contos circulam por uma grande variedade de subgêneros. Em abril eu havia comentado sobre “Our Fire, Given Freely”, que toma a tradicional associação entre Idade Média e elementos mágicos para criar o que se poderia chamar de “magia feudal”. Já nas obras mais recentes, Dickinson mostra intimidade também com a ficção científica.

“Economies of Force” se passa num futuro espacial pós-colonial, em que a grande ameaça à estabilidade social são os chamados “loomers”. Drones circulam todo o tempo à procura de pessoas contaminadas pela epidemia, embora em nenhum momento se explique a natureza do perigo ou do contágio. No fim, uma reflexão sobre propriedades emergentes de sistemas complexos.

No outro conto, “Anna Saves Them All”, temos uma história de “primeiro contato” (nunca nos cansaremos de histórias de primeiro contato) que possui todos os ingredientes tradicionais da categoria – em especial, um alienígena com aparência monstruosa que diz “preciso do seu cérebro” –, mas acrescenta variações originais e carrega nos dilemas éticos.

Entre as republicações, vale a pena experimentar o estilo hermético, mas bastante refinado nos detalhes, de Peter Watts em “Giants”, um conto que se passa a bordo de uma nave de pesquisa enviada para “o fim do tempo”. Para quem não tem saudades das aulas de física, vale conferir também “Prayers of Forges and Furnaces”, da franco-americana Aliette de Bodard, cujo cenário mistura steampunk e cultura asteca (isso mesmo).

Alguns lançamentos

A onda pós-apocalíptica continua frutificando na literatura, agora com Station Eleven, de Emily St. John Mandel. Lançado em setembro, o livro, que fala entre outras coisas de um grupo de teatro itinerante que encena Shakespeare para comunidades isoladas nos Estados Unidos depopulados, foi bem recebido pela crítica e está entre os cinco finalistas do National Book Award. (Nota extraordinária: a Intrínseca, a editora com o gatilho mais rápido do Oeste, anunciou há pouco que publicará o romance no Brasil.)

O novo romance do escritor David Mitchell, autor de Cloud Atlas, também foi lançado no início de setembro. Mais uma vez se divide em seis partes e mais uma vez apresenta elementos especulativos, em especial um iminente apocalipse ecológico na década de 2040. The Bone Clocks é finalista do Booker Prize e, comenta-se, favorito desta vez.

  1. Fairy tales do not give a child his first idea of bogey. What fairy tales give the child is his first clear idea of the possible defeat of bogey. The baby has known the dragon intimately ever since he had an imagination. What the fairy tale provides for him is a St. George to kill the dragon.