Station Eleven contém um cenário pós-apocalíptico. Pronto, está dito. E ficam perdoados os leitores impulsivos que abandonaram a resenha e foram à procura de um tema menos em voga. Afinal, poderíamos nos perguntar se, entre A Estrada e Jogos Vorazes, já não se andou falando o bastante sobre o fim da civilização. Obviamente, Emily St. John Mandel responderia com um bem enunciado “não”. E poderia ainda levantar seu livro e dizer, sem modéstia, “eis a prova”.

Na história de Mandel, o mundo sucumbe a uma variação da gripe suína que começou na Geórgia e se espalhou em poucos dias por todos os continentes. Após o contágio, a morte era quase certa dentro de 24 a 48 horas. Com 99,9% da população eliminada, vão desaparecendo, em maior ou menor velocidade, os confortos modernos – a internet, a eletricidade, a água encanada, os combustíveis.

A narrativa alterna entre momentos anteriores e posteriores ao cataclismo. No ano 20 do novo calendário pós-crise, um grupo de músicos e atores, que se referem a si mesmos como “a Sinfonia”, leva uma vida itinerante entre os pequenos povoados restantes, organizados em torno de antigos postos de gasolina, aeroportos ou hotéis afastados. São comunidades de poucas famílias, que mantêm uma subsistência precária. Passados os anos mais sombrios, existe menos violência entre os homens, mas ainda muita desconfiança mútua.

Um dos trunfos de Mandel foi ter escolhido mostrar o mundo pós-apocalíptico a partir desse conjunto peculiar de personagens, que acredita que Shakespeare tem muito a dizer aos sobreviventes. Como a escritora ressalta, o dramaturgo inglês também não teve tempos fáceis: ele produziu e encenou em períodos interrompidos por surtos de peste bubônica. Além disso, com esse artifício Mandel desvia da questão convencional do gênero, “como permanecer vivo?” , para se concentrar em algo mais universal, “como viver?”, no que a arte tem papel fundamental. Como diz o lema da trupe: “A sobrevivência é insuficiente.”

A Sinfonia é de fato um oásis de civilidade. A certa altura uma das personagens resume em poucas palavras a vida pós-crise da maioria dos membros da trupe: “Todos os outros morreram, saí andando, encontrei a Sinfonia.” Dentro do grupo, os problemas deixam de girar em torno de “será que meu vizinho vai me matar enquanto durmo para levar minha última caixa de munição” e passam às discussões e às disputas de opinião naturais a qualquer conjunto de indivíduos.

 

Mas o que tornava tudo suportável eram as amizades, claro, o companheirismo e a música e Shakespeare, os momentos de beleza e alegria transcendentes em que não importava quem havia usado o resto da resina no próprio arco ou quem havia dormido com quem, embora alguém – provavelmente Sayid – tivesse escrito ‘Sartre: o Inferno são os outros’ no cercadinho dentro de uma das caravanas, e alguém tivesse riscado ‘os outros’ e substituído por ‘as flautas’.

 

O itinerário da Sinfonia é extenso, e são necessários alguns anos para percorrê-lo nas antigas pick-ups, transformadas agora em carroças puxadas por cavalos. No início da história, acompanhamos o retorno da trupe, depois de um longo período, ao povoado de St. Deborah by the Water. De imediato, eles percebem uma atmosfera sombria entre os habitantes do local, cujo número parece, além disso, ter se reduzido bastante. Descobrem em seguida que o antigo prefeito está morto, e que o comando geral passou às mãos de um autoproclamado “Profeta”.

Existe ação bastante em Station Eleven para agradar a fãs de Walking Dead ou Lost, mas a verdade é que o livro como um todo se aproxima mais daqueles episódios em que muito se fala e pouco acontece.

Por outro lado, quando mostra o mundo pós-apocalíptico, Mandel se destaca pela sensibilidade e pela capacidade de evocar toda a atmosfera de desolação por meio de uma cuidadosa atenção aos detalhes. É possível entender muito sobre o sofrimento de uma personagem, a atriz principal das peças da Sinfonia, ao sermos lembrados de que ela talvez tivesse mantido um belo semblante, não fossem os dois dentes perdidos.

Em vários capítulos do livro, a narrativa retorna à vida no período pré-crise, especialmente nas 24 horas que antecederam o pico da epidemia em Toronto, de onde vem a maioria dos protagonistas. Na verdade, as cenas anteriores ao cataclismo convergem para um personagem em particular, Arthur Leander, e para um momento específico: sua morte inesperada num palco de teatro, quando interpretava o papel principal de Rei Lear. Desse modo, com ousadia, Mandel contrapõe toda a tragédia de um futuro pós-apocalíptico à tragédia de um único homem, que morre solitário e confuso quanto às próprias escolhas, alheio ao destino que aguarda o resto do mundo.

Mais que isso, Mandel parece sugerir que algumas pessoas, apesar de todo o sofrimento dos Primeiros Anos, encontrariam propósitos mais claros na vida do novo mundo. Fica evidente ao longo da história que quase todos os personagens pré-crise sentem-se perdidos ou inseguros.

O livro, no entanto, pode desagradar aos leitores que preferem uma visão mais aprofundada sobre os personagens. Na medida em que o foco da narrativa oscila entre mais de uma dezena de pessoas diferentes, em nem tantas páginas assim, o desenvolvimento se faz menos a partir de cada um deles individualmente e mais pela atmosfera geral que se estabelece entre eles.

Station Eleven, ainda que se utilize de um tema superexplorado hoje, tem um viés original e deve agradar a muitos leitores. Além de uma leitura empolgante, entremeada por momentos de suspense e impulsionada por um descobrimento gradual do cenário, o livro inova por trazer, no lugar da perspectiva de terror típica do gênero pós-apocalíptico, um diálogo quanto aos valores que movem cada um de nós, em qualquer tempo.

Os direitos de publicação no Brasil foram comprados pela Intrínseca, com lançamento previsto para 2015.