Como não sei o quão familiarizado você está com loucos de palestra, uso um trecho do livro de Vanessa Barbara à guisa de preâmbulo.

O louco de palestra é o sujeito que, durante uma conferência, levanta a mão para perguntar algo absolutamente aleatório. Ou para fazer uma observação longa e sem sentido sobre qualquer coisa que lhe venha à mente. É a alegria dos assistentes enfastiados e o pesadelo dos oradores, que passam o evento inteiro aguardando sua inevitável manifestação, como se dispostos a enfrentar a própria Morte.

 

Venho por meio desta confessar: fui, por muito tempo, um de tais maníacos. Apesar da cronista não ter descrito meu tipo particular de loucura, acho que este bem que se enquadrava na categoria: nos lançamentos de quadrinhos na Itiban Comics Shop, nos papos do Paiol Literário, nos debates da Semana Literária do Sesc-PR, em qualquer desses eventos eu precisava ter uma pergunta engatilhada para quando fosse dada voz à audiência.

Era uma mistura de pânico do silêncio (nunca dá para saber ao certo se o povo está envergonhado de tomar o microfone ou simplesmente detestou os convidados) com vontade de fazer a pergunta mais relevante possível, especialmente para os autores cujas obras eu conhecia bem. Era legal, mas era exaustivo e eu resolvi parar de quebrar cabeça com isso.

Na Flip, são outros quinhentos: trocentas pessoas mandam perguntas para o mediador, que escolhe apenas os melhores papeizinhos. Dessa forma, nunca bateu o pânico do silêncio e, portanto, sempre me senti livre para bancar o louco de palestra tradicional, escrevendo perguntas bobas que nunca seriam escolhidas pelo mediador1.

No entanto, na última Flip eu tive uma recaída e, na mesa bônus com Silviano Santiago e Mathieu Lindon, mandei uma pergunta ao primeiro sobre o que ele achava da representação LGBT na literatura contemporânea brasileira. Tinha em mente a pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”, estudo que serviu de embasamento à obra Literatura brasileira contemporânea: um território contestado, da professora Regina Dalcastagnè; nela, apresentou-se que a percentagem de personagens heterossexuais era imensamente superior à de homossexuais e bissexuais: respectivamente, 81%, 3,9% e 2,4%. Não sei por que me surpreendi quando o mediador simplesmente cortou o “contemporâneo” da pergunta e deu abertura para o escritor falar dos romances batidos de sempre: Bom-Crioulo, O Ateneu e O Cortiço.

Não fiquei (muito) chateado; no final das contas, eu queria apenas indicações de leitura para incluir na queerlist de literatura brasileira contemporânea que figuraria num parágrafo da minha dissertação. No trecho em questão, eu falava que apontar a presença ínfima de personagens LGBT na literatura brasileira contemporânea talvez fosse uma leitura ingênua e que indicaria, antes, a falta de tais personagens no recorte constituído pelo (pouco) que leio, um recorte minúsculo de uma produção constante e que nem sempre sai por grandes editoras 2.

Em seguida, afirmava que não precisava pensar muito para citar um bom número de romances lançados nos últimos anos que tivessem personagens LGBT. São os mesmos títulos que listo abaixo, com breves comentários sobre cada um.

ale-sergio

Sergio Y. vai à América, de Alexandre Vidal Porto

O primeiro romance ganhador do prêmio Paraná de Literatura é um xodó pessoal: li tanto a edição da Biblioteca Paraná quanto a da Companhia das Letras e, mesmo sendo uma re-leitura, esta foi uma das melhores leituras do ano. Não estou sozinho nessa: Carol Bensimon gostou, Camila von Holdefer resenhou, Daniel Galera disse que era um baita romance. É desses livros que são legais de ler sem saber muita coisa antes: se já não dá pra ler Grande Sertão: Veredas sem saber o segredo de Diadorim (Bruna Lombardi!), pelo menos ainda se consegue ter o prazer de conhecer Sergio Y. aos pouquinhos.

*

Carol-Bensimon

Todos nós adorávamos caubóis, de Carol Bensimon

Por falar em Carol Bensimon, eu não podia deixar de citar esse que foi um dos romances injustamente esnobados pelos prêmios literários do ano. Dando um salto qualitativo em relação a seu primeiro romance, Bensimon lançou em 2013 um road book estrelado por duas gurias viajando pelo interior do Rio Grande do Sul. A narrativa aposta inicialmente na ambiguidade da relação entre as duas (por que tanta tensão? elas eram apenas amigas ou tiveram algo mais?), mas isso não dura muito: na página 45, a narradora chuta maravilhosamente o balde da ambiguidade. Livraço.

*

digam

Digam a Satã que o recado foi entendido, de Daniel Pellizzari

Esse foi um livro que demorei pra ler. De besta. Ou melhor, tive minhas razões, que apresento. Gosto bastante do escritor como tradutor e contista – adorei o Ovelhas que voam se perdem no céu e O livro das cousas que acontecem – e há muito aguardava pelo seu romance dublinense para a coleção “Amores Expressos”. Quando o livro foi lançado, inventei um clube de leitura para ele: dei-o de presente para um grande amigo, emprestei meu exemplar autografado para uma grande amiga e comecei a ler o ebook. Leríamos todos juntos. Só que os primeiros parágrafos do livro são os seguintes:

Aí eu penso no sofrimento da jovem mulher feia na Rússia. Aos dezoito anos, uma garota russa que não seja estonteante deve se sentir um paquiderme. Em partes menos afortunadas do planeta a menina até que poderia ser considerada atraente, mas na Mãe Rússia isso não faz a menor diferença.
Em pouco mais de uma década as coisas se invertem. Por volta do aniversário de trinta anos, obedecendo a uma coreografia genética, quase todas as russas incham de uma hora para a outra. Viram matronas amargas embaladas em vestidos floridos, escondem a cabeça com lenços que parecem feitos com trapo de cortina e dedicam o resto da vida a zanzar de um lado para o outro com sacolas abarrotadas de manteiga, vodca e batatas.

 

Não sei se era para ser engraçado ou para mostrar – desculpe o meu francês – a escrotice do narrador logo de cara. Só posso dizer que isso me fez empacar na leitura e abandonar o livro. Foi então que os dois amigos insistiram que eu continuasse a ler, ambos batendo na tecla de que aquele era apenas um de vários narradores: o Panhoca comparou-o com os personagens de Welsh, dando vários exemplos de como o machismo é uma característica deles (que muitas vezes se volta contra eles); a Manu preferiu outra abordagem (“O autor não é machista e sabe o que tá fazendo. Lê logo a droga do livro!”). Ambos evitaram spoilers.

Pois bem: no meio das tantas histórias do livro, tem a de uma criança que perde o avô e decide se matar – algo nela me lembrou de Black Swan Green, de David Mitchell (lançado no Brasil como Menino de lugar nenhum, com tradução de Pellizzari). A falta de indicação de gênero me fez achar que era um garoto, só pra quebrar a cara mais adiante e descobrir que era uma menina. A história dela, de Patricia, se cruza com a de uma seita esquisitona que precisa do sacrifício de uma virgem(!?). Aconselho não abandonar o livro nessas partes místicas: elas são necessárias para entender o final do penúltimo capítulo, “O último dodô”. Ao lê-lo, entendi a insistência dos amigos e chamei-os para comemorar com um milk-shake pela falta de spoilers.

Uau. Apenas: uau.

*

Joca-1024x767

Do fundo do poço se vê a lua, de Joca Reiners Terron

Esse eu li há alguns anos – resenhei até. Lembro-me de ter gostado do livro: demorei para engrenar na leitura, mas o balanço final foi positivo. Se o tivesse lido mais recentemente, talvez tivesse gostado menos: lembro-me bem do final do livro e mudei de opinião em relação aos seus méritos (em bom português: eu gostava desse tipo de final, mas já não gosto mais). O livro conta a história de gêmeos idênticos; um deles transexual.

*

quiçá

Quiçá e Luzes de emergência se acenderão automaticamente, de Luisa Geisler

O primeiro romance da escritora – já resenhado por mim – é um desses que, se vejo numa livraria e estou acompanhado de um amigo, faço este ler duas páginas, as minhas preferidas. Além do que consta em tais páginas – que podem ser lidas aqui – vale salientar que um dos protagonistas, Arthur, é bissexual.

Em seu novo livro, Geisler mantém a característica, mas isso demora a aparecer: como aponta o crítico André Argolo, o personagem que muda os rumos do romance “e torna o livro mais interessante” dá as caras “setenta páginas após a primeira linha”. Depois que Dante surge, a vida de Ike ganha novas luzes.

“Imagina essas luzes na nossa vida. Hein, tá dando alguma merda que te tira a noção, que deixa as coisas mais nebulosas. As luzes acendem.”
“Deve ter pessoas assim, que são luzes.”

Cara, como eu amo esse livro.

*

gui-loja

Loja de conveniências, de Guilherme Smee

Esse é um livro irmão do Luzes acima. Ambos têm: lojas de conveniências – uma mais tradicional que a outra; um protagonista masculino meio paradão cuja sexualidade ganha novos contornos no decorrer da leitura; e tudo para agradar aos leitores mais jovens. Esse é outro livro que amo e prometo reler pra resenhar direitinho.

*

samir

Quatro soldados, de Samir Machado de Machado

Eu acho que o romance do Samir é o livro mais citado em minhas colunas sem que eu o tenha resenhado individualmente. (Dsclp.) Pois bem: o modo pelo qual o autor trata a empatia na narrativa já seria o suficiente para que o indicasse nessa lista, mesmo que não houvesse personagem LGBT algum. Mas não é o caso. Nesse romance dividido em quatro partes, a última delas acompanha dois dos soldados do título: Andaluz, um rapagão bissexual por quem todxs na província se interessam (e cujos olhos muito sensíveis à luz o levam a inventar uma traquitana precursora dos óculos escuros de hoje); e Silvério, que parece um personagem tradicional de Bernardo Carvalho de tão enrustido. Livraço.

*

Little Andy 04 (1)

A sombra no sol e Exorcismos, amores e uma dose de blues, de Eric Novello

Curto e grosso: li dois livros do autor e em ambos o protagonista era bissexual. A sombra no sol – spin-off de Neon Azul, que apenas comecei a ler – é a leitura do diário de um garoto de programa morto: quem lê o diário é Armando, gerente do bar Neon Azul, que veio lhe fazer uma oferta irrecusável. Sim: tem um quê de fantasia.

O segundo livro – EADB, lançado este ano – é um livro irmão do Quatro soldados, como escrevi num review do Goodreads. Ficção especulativa da boa, com o bônus de conter a melhor cena de sexo que li em 2014. Sem mais para o momento, Meritíssimo.

(Brinks, tem mais sim, Meritíssimo: acabou de sair uma entrevista que fiz com o cidadão.)

*

rafael-ban-jacobsen1

Uma leve simetria, de Rafael Bán Jacobsen

Nossa, bateu uma saudade do meu antigo blog. Lá, resenhei com gosto esse livro de Jacobsen – que também inspirou, com James Joyce e Jonathan Safran Foer, um ensaio meu sobre vegetarianismo e literatura. Conta a história de amor de dois adolescentes em uma colônia judaica.

*

livro_Entreirmãos

Entre irmãos, de Rafael Farias Teixeira;

Esse é um livro com boas ideias que serve de exemplo de como são necessárias as figuras do editor, do preparador de originais e do revisor. Tendo atuado nas três funções, eu percebi durante toda a leitura a força que o texto poderia ganhar com certas alterações. Li até o fim porque a história era legal e eu queria saber qual seria o desenlace depois das reviravoltas criadas pelo autor. É um bom passatempo, especialmente para quem curte de um bom melodrama.

*

Raphael

Suicidas, de Raphael Montes

Já escrevi a respeito do livro e, quando disse que havia toques de homofobia no meio do espírito sanguinolento da obra, dei a dica da existência de personagens homossexuais nele. Eu, particularmente, preferia que não houvesse: além deles não serem lá muito complexos, há uma cena que certamente agradará aos fãs do Bolsonaro e do Malafaia. Pareceu menos uma denúncia dos perigos da homofobia (internalizada) do que uma exaltação da ideia de que boa parte dos homossexuais assassinados é morta por seus pares – ex-amantes etc.. Problemático, mas a interpretação é livre.

*

veronica-stigger-1

Opisanie Świata, de Veronica Stigger

Pense num livro louco e massa e difícil de resumir. Pensou? É esse de Stigger. Dizer que é sobre a viagem de um velho polonês (Opalka) até a Amazônia para encontrar um filho que desconhecia, internado em estado grave, é dizer pouco. A experiência da autora como contista transparece nas histórias que se intercalam a principal. Por exemplo: quando o navio em que Opalka viaja atravessa a linha do Equador, os passageiros que nunca tinham passado pela experiência (entre os quais, um casal homossexual) são obrigados a cumprirem uma série de provas absurdas – a violência de algumas delas lembram o conto Os anões, homônimo do livro anterior da autora. Livraço.

*

Elvira Vigna 2014.

O que deu para fazer em matéria de história de amor e Por escrito, de Elvira Vigna

Por mais que eu tenha gostado do primeiro (gostei bastante, aliás), confesso que pouco me lembro desse livro. Sei que há ao menos um personagem bissexual, mas está tudo meio nublado na memória. Dsclp.

A leitura de Por escrito, contudo, está fresquinha na memória: há um empate técnico entre ele e Nada a dizer como meu livro preferido da escritora, com ligeira vantagem deste. No novo romance de Vigna, ela faz algumas brincadeiras com as expectativas do leitor: num primeiro momento, somos surpreendidos pela homossexualidade de certa personagem; mais adiante, algumas das explicações fáceis para determinada ação da mesma personagem são postas em dúvida pela narradora. São apenas detalhes desse livraço, mas são suficientes para incluí-lo nesta lista.

*

Carola_Saavedra_cr_dito_Andrea_Marques_01-1024x682

Toda terça, de Carola Saavedra

Não sei como explicar a presença desse romance na lista sem dar um baita spoiler ao leitor. Já escrevi sobre ele anteriormente – também evitando spoilers. É indicado para quem tiver gostado dos livros do Alexandre Vidal Porto e da Carol Bensimon, bem como para quem viciou no seriado Sessão de terapia. Como diria Scott Pilgrim, “I’m in lesbians with this book”.

*

michel

Longe da água, de Michel Laub

Lembro que li, lembro que gostei (em especial, da vibe praieira e da inclusão do surf na história, algo que nunca tinha lido num romance brasileiro), lembro que havia alguma questão homossexual. Fora isso: não me lembro de mais nada. Dsclp.

*

(05/12/2014 Atualização por motivos de: esquecimento besta.)

chan_20
As fantasias eletivas, de Carlos Henrique Schroeder

Esse foi um que li numa sentada, como escrevi no Goodreads. E fiz numa época em que eu realmente não podia ler nada além de Bernardo Carvalho e Gregory Woods a fim de terminar logo a bendita dissertação. Aproveitei o busão indo e vindo da biblioteca para ler a novela de Schroeder e, cara, como eu gostei desse livro. Dois são os personagens principais e um deles é Copi, uma transexual que adora fotografar e escrever poemas.

*

4863822342_32619111c5_b

Nossos ossos, de Marcelino Freire

Quando fui para a Flip, jurei que não compraria livro algum: mala cheia e falta de grana eram os motivos principais. Como já revelei por aqui, não me segurei quando vi o Marcelino por lá: melhor seria não almoçar um dia do que voltar pra Curitiba sem o livro dele autografado. Li pouco depois de voltar de viagem e fiquei embasbacado como esse cidadão conseguiu escrever um romance inteirinho com o mesmo ritmo e poesia de seus contos. No Goodreads eu escrevi que era livro “Pra devorar e (desculpe o trocadalho) chupar até o tutano”; aqui, eu mudo de opinião e digo que é livro pra ler andando e ler em voz alta no meio da praça ou do ônibus – é daqueles livros com sotaque, sabe? Mesmo que isso faça o povo achar a gente meio doido.

*

Bernardo-Carvalho-©-Adriana-Vichi

O filho da mãe, de Bernardo Carvalho

Uma falha grave na versão desatualizada dessa lista foi a ausência do Bernardo. Fazia sentido eu não citá-lo no parágrafo da minha dissertação em que fiz uma queerlist: afinal, todo o resto do texto era sobre ele e seus romances – TODOS possuem personagens LGBT. Não fez muito sentido esquecê-lo justo nessa lista. Pois bem: três de seus livros estão entre meus favoritos pessoais. São eles: OnzeAs iniciais O filho da mãe. Este foi aquele que, depois de lido, me fez ter certeza de que era fã do autor. Livraço.

  1. Exceto Samuel Titan Jr., que não apenas foi um fofo por ler minha pergunta para Lydia Davis sobre seus gatos como também não omitiu o “nome” de quem perguntava: Tuca.
  2. Um problema que alguns apontaram na extensa pesquisa da professora Dalcastagnè foi a concentração da investigação em grandes editoras.