Em termos de lançamentos literários, acredito que 2014 foi um ano realmente peculiar. A preocupação com a reedição parece começar a crescer no meio editorial brasileiro, ainda que tenhamos muitas obras (mesmo!) fora do mercado há décadas, limitadas a exemplares por vezes caros demais nos sebos. Felizmente, como disse, 2014 trouxe algumas reedições pelas quais eu nem esperava mais, como Pagu: vida-obra, de Augusto de Campos, lançada recentemente pela Companhia das Letras.

Patrícia Galvão, de apelido Pagu (apenas um de seus apelidos e pseudônimos), poderia ser um nome natural aos ouvidos dos brasileiros, ao menos dos que leem mais literatura nacional, mas nem sempre é. Participante do movimento modernista em São Paulo desde seus primeiros tempos, apesar da diferença de idade em relação à geração, ela se destaca para mim por duas razões básicas: pela atuação fortemente crítica e política e, sim, pelo fato de ser mulher e querer ser reconhecida como tal. Por isso, Pagu deve ser compreendida por inteiro, para além de uma mera cronologia de acontecimentos ou de uma bibliografia comentada. Pagu é muito além disso.

Por Pagu: vida-obra, é possível ter uma visão panorâmica muito elaborada de quem foi e do que fez Patrícia Galvão. Introduções à vida de alguém para muitos desconhecidos são, é claro, essenciais, o que faz com que Augusto de Campos, seu biógrafo fora do sentido estrito, nos apresente com muitos exemplos, como que didaticamente, seu livro e a relação intrínseca entre os fatos da vida da autora e sua relação com a obra. Isso, porém, não foi feito de modo biografista, como se a vida explicasse a obra; Augusto nos mostra Pagu como figura em que vida e obra interagem de tal modo que as fronteiras se atenuam.

Começo esta resenha com a ênfase no “muito além” justamente por possíveis (e efetivos) erros que podem cometer alguns que tentam entender essa figura, bem como aqueles que tentam salvá-la do esquecimento. Augusto de Campos, autor (afinal de contas) da dita “vida-obra”, é realmente um dos mais determinados a criticar o cânone modernista como foi estabelecido no meio acadêmico e também a exaltar nomes como o de Pagu nessa crítica. Apesar de não ser extremamente necessário ao leitor se dar conta que o autor dessa vida-obra e suas ideias são fundamentais para se entender a proposta e a estrutura do livro, sua leitura com certeza ganha novos tons que podem nos motivar a tomar a causa para nós.

Tomando a causa, inclusive, aproveito para demonstrar como certas vezes a situação de Pagu em nossa história literária pode ser mal compreendida: recentemente, Márcia Camargos, no caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo, tomou direções no mínimo equivocadas em sua resenha de Pagu: vida-obra. Não quero, por favor, desvalidar a resenhista como pessoa de modo algum, sendo que nem a conheço. Só utilizo sua resenha aqui como exemplo da falta de compreensão sobre Pagu. Camargos, no caso, refere-se ao livro como “Pagu: vida e obra”, erro que por si só já mostra como, infelizmente, Patrícia Galvão, em sua visão, é mal entendida. Vou tentar explicar melhor a situação toda.

Feminista (por que não?), comunista em boa parte de sua vida e, acima de tudo, escritora, Pagu se consolidou, após sua morte, como espécie de femme fatale do modernismo brasileiro, como se sua própria literatura e suas ideias não nos importassem realmente, afinal ela seria apenas um elemento anedótico na história literária nacional. A formação do cânone por parte dos acadêmicos, quase sempre reducionista e conservadora, nunca fez questão de abordar Patrícia Galvão para além de mulher-objeto, o que, é claro, ela não era de modo algum. Patrícia Galvão era Pagu, era escritora, era militante, era mulher. Por tudo isso foi, é bem evidente, reprimida em sua própria época e, de certa forma, continua até hoje por meios menos evidentes.

Através de Pagu: vida-obra, livro que Augusto de Campos, desde sua primeira edição, de 1982, tentou apresentar como fruto de suas pesquisas feitas como escritor mesmo, não exatamente um biógrafo. Pagu: vida-obra deve ser, então, entendido não como uma biografia no sentido ortodoxo da palavra, mas sim como uma nova proposta que se adequa ao objeto de estudo, não sendo necessariamente um modelo para outras vidas-obras. Por sua estrutura, somos confrontados com um fato essencial sobre a escrita de Pagu: ela vem de uma pessoa, e essa pessoa tem lutas próprias que estão plenamente dispostas ao longo de sua escrita. A escritura das mulheres, que procura sempre mostrar que existe, que tem problemas e necessidades diferentes dos homens, com seu espaço consolidado, é a escrita de Pagu. Daí vem o porquê devemos entendê-la como “vida-obra”. O termo, para além de irônico, demonstra a intenção diferenciada de seu autor, que merece ser entendida como alternativa à biografia convencional.

No livro de Augusto, ainda, há muito material diverso que nos ajuda a entender melhor Patrícia Galvão e finalmente ter acesso a tudo que escreveu e a que nunca mais tivemos acesso por descaso.

Para além dos romances Parque industrial (1933) e A famosa revista (1945), um pouco mais conhecidos, vemos Patrícia em todas suas facetas e seus pseudônimos, em sua forte e constante atuação jornalística e propagandista e em sua intenção de promover o acesso a artistas e escritores estrangeiros ou não deixados de lado. A presença de material iconográfico e biográfico, escrito pelo próprio Augusto, nos auxilia na compreensão da pessoa e de seus propósitos na sociedade em que vivia. A ironia, esse elemento tão modernista quanto clássico, também está por todos os escritos, como um dos recursos mais essenciais do escritor, em especial aquele com propostas mais declaradas. Pagu: vida-obra, então, é com certeza um livro, uma reedição afinal, que deve continuar presente e disponível para leitura e também como incentivo para que se procure escrever mais sobre Pagu e a partir dela.