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Verão Infinito #0
Verão Infinito #1

Parabéns. Se você está lendo este texto, espero eu que seja porque já chegou na página 186 do Tijolo-Laranja-Mais-Belo-Do-Mundo. Quase 200 páginas vencidas e você já pode se orgulhar daquele status de 16% de livro lido na sua rede social literária favorita. Como bem disse a Simone no texto zero desta nobre maratona, “sofrimento cria caráter”.

Como tenho uma quedinha por assuntos políticos, aproveito para abrir este texto lembrando de um fato que pode ter passado despercebido para muitos leitores, principalmente porque a tal referência está escondidinha no meio de um travessão perdido no meio de um calhamaço de explicação de Michael Pemulis a respeito do seu lucrativo negócio urinário na Academia de Tênis Enfield.

Lá pela pág. 158, eis que surge “o complexo emblema heráldico da ONAN — uma águia rosnando de frente com uma vassoura e uma lata de desinfetante numa garra e uma folha de bordo na outra e com um sombrero e parecendo ter comido metade de um pedaço de tecido pontilhado de estrelas”.

Em resumo, THIS:

O emblema da ONAN
O emblema da ONAN

Amigos, não é à toa que os caras de Québec querem se separar, afinal, a folha símbolo do Canadá tem o mesmo peso que uma vassoura e uma lata de desinfetante. #GoGoQuébecois

Enquanto Steeply e Marathe continuam confabulando (mas sem avançar muito nesse bloco de páginas), David Foster Wallace nos presenteia com mais peças do seu mais fino humor negro. Duas merecem destaque: um acidente envolvendo uma bolsa de sobras de tijolos (os da construção civil mesmo) e o terrível roubo de um Coração Artificial Externo Jarvik IX1.

A “trama principal” (se por ela entendermos o que está escrito na quarta capa do livro) avança pouco nesse segundo bloco de páginas. Em compensação, DFW está mais à vontade para continuar estabelecendo o mundo bizarro criado por ele.

Prova disso são as sete páginas em que a verve ensaísta do autor volta a dar as caras (após a linda passagem sobre depressão que nos apresentou Kate Gompert) para explicar por que a videotelefonia fracassou. A fantasia de que falamos ao telefone sem prestar total atenção em nosso interlocutor e, ao mesmo tempo, esperamos que ele esteja prestando total atenção em nós é das observações mais sagazes de DFW.

Era uma ilusão e a ilusão era auditiva e auditivamente sustentada: a voz do outro lado da linha telefônica era densa, violentamente comprimida, e vetorializada diretamente para o seu ouvido, permitindo que você imaginasse que a atenção do dono da voz era similarmente comprimida e concentrada… mesmo que a sua própria atenção não o fosse, eis a questão. Essa ilusão bilateral de atenção unilateral era quase infinitamente satisfatória do ponto de vista emocional: você ganhava a possibilidade de acreditar que estava recebendo a total atenção de alguém sem ter que reciprocar essa atenção. Considerada com a objetividade de um julgamento a posteriori, a ilusão parece arracional, quase literalmente fantástica: seria como ser capaz ao mesmo tempo tanto de mentir quanto de confiar nas outras pessoas. (pág. 151)

 

Quem nunca ficou desenhando losangos enquanto conversava ao telefone que atire a primeira pedra.

DFW brinca deliciosamente com a relação de escravidão tecnológica que alguns de nós mantêm com a indústria, citando, por exemplo, máscaras faciais criadas para potencializar os pontos positivos do rosto do usuário. Assim, você não corre o risco de ter a imagem distorcida pelo vídeo e sair mais gordo(a) que o normal na videochamada.

Falando em imagem distorcida, o Mario… Desculpe, Meritíssimo, retiro essa.

Mas o Mario, o irmão Incandenza do meio, que sofre de sérios problemas físicos e mentais. O menino resolve ter sua “primeira e única experiência mínima e remotamente romântica até aqui”, como definiu o autor. Um passeio na mata nunca foi tão… perturbador. Para mais, sugiro uma rápida ida à pág. 126.

Quem sabe fugir de um “date” é o caçula Incandenza, Hal, como ele bem explica no cartucho de entretenimento digital Tênis e o prodígio selvagem:

É assim que você recusa um encontro extramuros pra não ser mais convidado. Diga alguma coisa tipo Eu lamento muito não poder sair pra ver o relançamento de 8 ½ num monitor gigante no Festival do Celuloide de Cambridge nesta sexta, Kimberly, ou Daphne, mas é que, sabe, se eu pular corda duas horas e daí correr de ré por Newton até vomitar eles me deixam assistir cartuchos de jogos e aí a minha mãe lê o OED2 em voz alta pra mim até a hora de apagar as luzes às 2200, & c.; aí você pode ter certeza de que dali em diante Daphne/Kimberly/Jennifer vai esticar as suas anteninhas pra outro lado em busca de socialização-ritual-tipo-dança-e-namoro-adolescente. (pág. 181)

 

Na semana que passou (ou antes, para os apressadinhos de plantão que já estão lendo o que era pra ser lido na semana 469 do verão), fomos apresentados também à Casa Ennet de Recuperação de Drogas e Álcool. Vizinha da academia de tênis dos Incandenza, o lugar parece ser mais uma oportunidade para DFW retratar um vício e seus viciados. Conhecemos alguns internos3 através de pequenas transcrições de depoimentos, mas nada além disso. Aguardemos os próximos capítulos.4

P.S. Aceito doações para comprar o meu MAPA INFINITO DA ONAN por 35 obamas.

  1. Não coloque o seu coração artificial em uma bolsa que pode ser confundida com aquela onde você guarda sua carteira.
  2. Oxford English Dictionary, Hal é meio que viciado nele.
  3. Na verdade, já conhecíamos dois deles: Gately, o cara que roubou a casa do separatista canadense gripado; e Clenette, garota que, no Ano do Chocolate Dove Tamanho-Boquinha, estava envolvida com o traficante Roy Tony.
  4. Notas de rodapé: eu tentei.