Quando escreveu Os bestializados, em 1987, José Murilo de Carvalho pesquisava sobre uma conhecida passagem da história brasileira, a Proclamação da República de 1889. Seu objetivo na abordagem, evidentemente, não era celebrar a vasta memória oficial construída em torno do evento, mas sim analisar um tema transversal, que dialogava com essa memória institucional, mas que o fazia de um modo bastante peculiar.

O interesse do historiador derivara da famosa frase de Aristides Lobo, que dizia que o povo assistira à proclamação “bestializado”, que não participara dos eventos e, pretensamente, não tinha vocação cívica e pouco se interessava pela política nacional. Essa alegação foi contraposta a outro célebre evento da história nacional, a Revolta da Vacina, de 1904. Quando aquela suposta tibieza de 1889 se tornou o intenso engajamento da população em 1904, José Murilo de Carvalho tinha seu problema historiográfico nas mãos: o que explica a diferença entre a participação pública da povo nos dois casos?

A presente resenha se inicia com esse apanhado do trabalho historiográfico de 1987 porque suas conclusões são fundamentais para compreender de onde veio A formação das almas, livro de 1990 que é, originalmente, a obra sabatinada por este texto.

Uma vez que houve uma participação popular muito diferente nos dois momentos históricos, Carvalho analisa diferentes documentos, declarações, obras literárias, tratados políticos e outras fontes para concluir, grosso modo, o seguinte: na medida em que 1889 mudou mais a dinâmica institucional do que a vida concreta, o povo pouco se envolveu (ou se deixou envolver) no seu movimento, já que, historicamente, a participação popular na formulação de leis e na definição de rumos políticos do Estado e da nação se mostrara, no mais das vezes, uma falácia. O Estado era dominado pelas elites e as leis eram feitas nessa direção, de modo que o povo, não ignorando os fatos, pouco sentiu-se inclinado a participar desse movimento. A Revolta da Vacina, ao contrário, referia-se diretamente à vida prática, cotidiana e concretamente vivida, na qual havia a possibilidade de intervenção popular e que concernia às classes populares diretamente.

Havia, pois, (e ainda há) um descompasso histórico entre a realidade concreta e as instituições, algo sentido muito fortemente pelas classes populares. Daí as oscilações históricas de seu engajamento.

A pergunta disso extraída, pensando no livro de 1990, é a seguinte: “Não havendo participação mais concreta da população na construção da República, como pode ela ser ‘educada’ para uma sociedade republicana? Como serão ensinados (ou inculcados, dependendo do ponto de vista) os ‘valores republicanos’ e os comportamentos civis mais elementares para o funcionamento de um regime republicano?” Como o título do livro aponta, era preciso “formar as almas”, algo especialmente complicado numa sociedade como a brasileira, levando em consideração a histórica situação de exclusão popular do governo e o patriarcalismo das instituições.

A “solução” instrumentalizada pelos envolvidos na proclamação e posterior construção da República foi, dentre outras, a criação de um certo imaginário social em torno do regime, corporificado em “imagens, alegorias, símbolos e mitos” (p. 10), pois a “(…) manipulação do imaginário social é particularmente importante em momentos de mudança política e social, em momentos de redefinição de identidades coletivas.” (p. 11)

Era preciso, nessa perspectiva, criar alguma legitimidade para esse novo regime político, uma aceitação ou ao menos um reconhecimento social que passasse a plasmar a mentalidade nacional no sentido de garantir as bases de sustentação de todas as mudanças pelas quais passava o país. Era preciso fomentar comportamentos, atitudes e uma determinada conduta que permitisse a estabilidade da nação.

Esse projeto, no entanto, pela própria ambição e escopo que lhe definiam, despertou uma série de conflitos no seio desse grupo de arquitetos da República (e do imaginário republicano). Carvalho identifica pelo menos três grandes grupos ou correntes na disputa ideológica pela República: “o liberalismo à americana, o jacobinismo à francesa, e o positivismo.” (p. 9) Cada um desses grupos partia de uma base ideológica distinta e propunha encaminhamentos políticos, sociais e econômicos diversos, acabando por produzir visões da República bastante diferentes, mas de cuja diferença nasceu o próprio Estado brasileiro.

O liberalismo propunha uma república nos moldes da estadunidense, com um sistema liberal cuja base era o indivíduo e sua livre iniciativa. O jacobinismo retirava suas referências dos ideais da Revolução Francesa, dando grande ênfase ao caráter mais radical e coletivo da política, e preconizando a necessidade de uma democracia igualitária. Os positivistas, por sua vez, baseavam-se nos ensinamentos e na doutrina de Auguste Comte, na sua “religião da humanidade”, um corpo de “crenças científicas” no progresso da civilização bem ao gosto da burguesia moderada cujo modelo histórico mais próximo era a Terceira República francesa.

Como é possível imaginar, o tipo de República que cada um desses grupos almejava construir era bastante diferente. A despeito de uma ligeira aproximação entre o liberalismo e o positivismo num sentido “conservador” (essa caracterização é por demais vaga, mas usemo-na dadas as circunstâncias), a verve mais radical do jacobinismo tornava a maioria dos pontos-chave de cada uma das doutrinas políticas inconciliáveis (salvo por concessões que, basicamente, as descaracterizariam enquanto tais). Pelo menos até o final do século XIX, a tônica ideológica republicana foi marcada pelo conflito entre esses ideais e projetos de sociedade.

De maneira perspicaz, José Murilo de Carvalho volta-se para os esforços propagandísticos de cada uma dessas correntes para radiografar os conflitos políticos, pois as refregas nos ministérios, partidos e assembleias, dentro e fora do Estado, deixaram marcas profundas na construção do imaginário republicano. Conhecendo a contenda política, social e econômica, o historiador usa de sua sensibilidade de exegeta para sabatinar monumentos, cartilhas, o hino nacional, a construção dos heróis, as versões da proclamação, as charges, os símbolos nacionais, e, assim, desnudá-los em seus significados históricos. Bem conduzidos, os ensaios são capazes de desenterrar a dialética histórica que se esconde nas entrelinhas do simbólico.

A versão histórica acerca do ato da proclamação, por exemplo, expressa bem essa disputa. Os ideólogos da república liberal reivindicavam a relevância da participação de Quintino Bocaiúva, chefe do Partido Republicano e elemento republicano civil, aliado à elite burguesa em ascensão na economia cafeeira. Os militares, descontentes com os parcos louros da Guerra do Paraguai e desejosos de uma posição de maior prestígio dentro da República nascente, insistiam que Deodoro da Fonseca fora a figura de maior proeminência no heróico ato da proclamação. Os positivistas, por sua vez, insistiam na participação ativa e decisiva de Benjamin Constant, uma espécie de mentor da juventude militar e pivô dos ideais científico-religiosos que essa corrente almejava para a República.

Ainda que A formação das almas seja resultado de uma junção de diferentes artigos e ensaios que o historiador publicou sobre esse tema (à época do centenário da Proclamação), ele tomou o cuidado de uni-los cuidadosamente, aprofundando análises, incluindo citações, trabalhando melhor algumas hipóteses explicativas e acrescentando as imagens que ele disseca ao longo do texto. A união temática dos ensaios, ao fim da curadoria de Carvalho, torna sua abordagem ainda mais interessante, porque permite que um mesmo problema histórico (a “formação republicana das almas”, no caso) seja abordado a partir de diversos enfoques. E, ao fazer isso sem tornar o livro um tratado de iconografia nem um livro historiográfico que usa imagens como meras ilustrações, o historiador achou, mais uma vez, aquela sua voz tão singular dentro da historiografia brasileira.