Irritado com a má interpretação de um de seus atores, Riggan Thompson (Michael Keaton) pede a seu empresário por um substituto: “Que tal Woody Harrelson?” – ele pergunta. “Ele está no próximo Jogos Vorazes” – responde o empresário. “E Michael Fassbender?” “Está em X-Men.” “Então que tal Jeremy Renner?” “Ele é um dos Vingadores.” “Merda. Colocaram uma capa nele também? Eu não acredito nisso” – diz Riggan, ainda mais irritado, antes de enclausurar-se no camarim, onde vê no noticiário televisivo uma reportagem de Robert Downey Jr. falando sobre o sucesso de Homem de Ferro.

Pois é, parece que todos em Hollywood foram engolidos pelo mundo dos super-heróis, inclusive os principais atores de Birdman, que entre seus coadjuvantes têm Edward Norton, de O Incrível Hulk (2008); Emma Stone, agora no novo Homem Aranha (2014); e até Naomi Watts, conhecida por seus papéis dramáticos e agora na série Divergente (que não deixa de ser uma espécie de saga heroica). No entanto, a maior alusão aqui é a Michael Keaton. Embora o ator se mostre bastante incomodado com isso, sua carreira tem sim muitos paralelos com a de seu personagem: seu ápice se deu entre o fim dos anos 80 e o começo dos 90, quando protagonizou os dois Batman de Tim Burton para, na sequência, cair no ostracismo – entre tantos filmes ruins que fez nesse período de limbo, esteve o reboot de Robocop (2014), do brasileiro José Padilha (leia a crítica aqui). Depois de mais de seis anos sem protagonizar um só filme, agora com Birdman é que começa a retomar a credibilidade.

O diretor e roteirista do filme, o mexicano Alejandro González Iñárritu, não esconde que teve Michael Keaton em mente enquanto escrevia o papel de Riggan Thompson, um ator que viveu o super-herói Birdman em três filmes de sucesso nos anos 90, foi esquecido nos anos seguintes e agora tenta retornar com uma ousada adaptação teatral de um conto de Raymond Carver. Ainda assim, para além do mero jogo de referências com seu elenco, a história de Iñárritu é uma bem acabada metáfora irônica sobre a situação atual das artes dramáticas e, à certa medida, um pouco semelhante à história de The Humbling (2014, O Último Ato no Brasil), ótimo filme baseado num livro de Philip Roth, com Al Pacino vivendo um ator decadente que perde os limites entre realidade e ficção.

Com sua hierarquia de meios (ainda colocando o Teatro como a mais nobre dramaturgia), a extravagância cinematográfica (que põe “todos os atores numa capa”, como diz Riggan), a frugalidade da fama e do reconhecimento (que faz com que bons atores, como Keaton, sejam rapidamente jogados no time B) e da supervalorização do crítico (como eu, que com termos pedantes e escrita embolada, teorizam sobre uma obra como se fossem os últimos e únicos peritos sobre o tema), Birdman consegue traçar um panorama crítico e cheio de humor negro sobre esse louco meio das artes.

O filme aposta na crueza das coxias e corredores de um teatro da Broadway para abordar as diversas camadas que seu roteiro propõe. Uma história ousada e autoconsciente de sua ambição, que chega a irritar por bem suceder em todos os seus intentos, fazendo bater aquela invejinha em todos que sonham em ser realizadores e nos obrigando a dizer: “Eu queria ter feito esse filme”.

Iñárritu é detentor de uma filmografia elogiada, cuja projeção de maior alcance começou ainda no México com Amores Brutos (2000), indicado ao Oscar de Filme Estrangeiro, seguido pelos já americanos 21 Gramas (2003), indicado a dois Oscars, e Babel (2006), indicado a sete Oscars (a primeira de Diretor a Iñárritu), fechando, assim, uma espécie de trilogia com o roteirista Guilhermo Arriaga. Contudo, desde que a dupla Iñárritu-Ariaga seguiu por caminhos diferentes, há quem diga que a carreira de ambos perdeu certos elementos que unidos formavam um todo orgânico, incômodo e visceral. Certamente menos mondo cane do que em seus primeiros filmes, Birdman é o voo mais alto desse diretor, que sempre pareceu ter total consciência de sua ambição e provou plena capacidade para encarar o desafio.

Assim, Birdman se mostra como uma realização fantástica de muitas maneiras, tanto porque sua narrativa mergulha na mente perturbada e insegura do protagonista, onde o espectro do antigo super-herói aparece para atormentá-lo e lhe dá poderes que não sabemos ao certo se são reais ou frutos da loucura, quanto porque é absolutamente fantástico o controle técnico de Iñárritu em criar, junto com o fenomenal diretor de fotografia Emmanuel Lubezki (de Gravidade, 2013), um jeito ousado de filmar, com um falso plano-sequência de duas horas em que as transições são tão suaves que nos tira a percepção do corte. E tudo isso sem deixar de valorizar cada performance de seus atores que, vale dizer, estão fabulosos.

Mais do que uma comédia, esse filme é uma grande brincadeira com a indústria, com os atores, realizadores, críticos e outros envolvidos nesse mundo do espetáculo. Justamente por isso seu roteiro insere, já ao final do filme, uma deslocada cena em que mistura alguns personagens de produtos de sucesso na cultura pop, como Spider-Man e Transformers. E do mesmo modo em que referencia a carreira de Keaton em seu personagem, coloca Edward Norton (indicado ao Oscar de Coadjuvante) no papel em que o próprio ator tornou-se conhecido por interpretar na vida real dos sets de filmagem, como aquele que dá trabalho ao diretores, com exigências descabidas e confusão com os colegas. O mais interessante é que todos os atores, bem estabelecidos e atualmente em alta na indústria, topam o desafio da empreitada sem medo, construindo, assim, uma sinfonia perfeita, de tom e ritmo ideais, combinados tanto com a suave steadicam de Lubizki que passeia pelo lindo cenário do teatro St. James, quanto pelo score da bateria frenética de Antonio Sanchez, que compõe quase toda a trilha sonora, também servindo para acentuar o ritmo louco da narrativa.

Com um orçamento de aproximadamente US$ 22 milhões e arrecadação até agora superior a US$ 420 milhões ao redor do mundo (via IMDB.com), o filme vem conquistando não só o público, como já arrematou mais de 120 prêmios, incluindo o Globo de Ouro de Melhor Comédia e Melhor Ator de Comédia (Michael Keaton), os  principais prêmios dos sindicatos de atores (SAG) e de produtores (PGA), Filme do Ano do American Film Institue (AFI), além de 7 indicações ao BAFTA inglês, a ser realizado dia 8 de fevereiro, e incríveis 9 indicações ao Oscar (empatado com O Grande Hotel Budapeste, de Wes Anderson), a ser realizado dia 22 de fevereiro.

Iñárritu disse em entrevista (veja aqui) que o filme conta com “uma espécie de metarrealidade que se manifesta a todo instante” – e melhor descrição talvez não pudesse haver para sua realização. Com uma narrativa preenchida por uma realidade fantástica e ao mesmo tempo metalinguística em seu conteúdo, Birdman é daqueles filmes que nos pegam como uma onda que nos abate desavisados e nos arrasta por metros, até que finalmente conseguimos escapar de suas guerras e levantar novamente, olhando para os lados, como bobos, procurando o que nos atingiu, antes de mergulhar mais uma vez…