É muito provável que nenhum escritor tenha criado um acervo tão grande de histórias tristes e personagens detestáveis quanto Charles Dickens. Antes de abrir um livro dele é preciso se preparar para órfãos mal tratados, amores trágicos e a certeza de que nada, nunca, realmente acaba bem.

É possível que um menino pobre torne-se rico, mas perderá seu grande amor. Ou que um órfão seja adotado por um benfeitor amável, mas uma garota de 17 anos precisou morrer para isso. Em Tempos difíceis, a protagonista pode encontrar afeto e livrar-se de sua mente perturbada, mas perderá o irmão e o homem por quem se apaixonou, e presenciará a morte de um homem bom e honesto.

Contudo, talvez esse seja um dos romances menos trágicos de Dickens. Ao contrário de livros como David Copperfield e Grandes esperanças, sua história não se espalha por anos e ele não conta sobre o amadurecimento de um personagem. Tempos difíceis tem seu tempo e espaço concentrados e parece mais uma crítica de costumes, a exemplo de Uma canção de Natal.

Dickens é, essencialmente, o escritor da revolução industrial. Seus personagens ricos não são aristocratas, mas burgueses, donos de fábrica, banqueiros. Seus cenários são quase sempre urbanos, cidades cobertas da fuligem pesada das primeiras chaminés e povoadas de proletários que trabalhavam de domingo a domingo por horas infinitas. Mesmo em seus romances de formação, a nova estrutura social tem um papel fundamental: o avanço do capitalismo permite mobilidade e dá a personagens como Pip a possibilidade de escalar socialmente.

Sendo assim, talvez Tempos difíceis seja um dos momentos em que essa radiografia da época é melhor executada e onde ela é mais central para a narrativa. O livro começa apresentando o sr. Gradgrind, dono de uma escola modelo e partidário de uma educação totalmente baseada em fatos. Tudo aquilo que não for ciência não serve para nada e, portanto, não interessa. “Não imagine, Louisa, nunca imagine” é a frase que ele diz à filha sempre que percebe que sua mente se afasta um pouco dos fatos duros.

O tom é satírico desde o início; Gradgrind e sua mulher são tipos cômicos e irritantes, ele cegamente apegado aos fatos, ela hipocondríaca e dramática. No entanto, muito da força da crítica de Dickens está em sua capacidade de ir, progressivamente, humanizando Gradgrind, tornando-o uma espécie de vítima das ideias insensíveis de seu tempo, ainda que ele seja um ser humano capaz de empatia, compaixão e amor.

O ponto central do livro é, na verdade, uma vítima do seu tempo: a filha mais velha de Gradgrind, Louisa. A moça foi educada segundo os ideais de objetividade de seu pai e desde cedo aprendeu geologia, química e matemática, mas foi impedida de imaginar. Privada de uma educação sentimental, Louisa cairá em um casamento pavoroso e se verá atormentada pela falta de vida interior. A personagem é uma boa personificação do que Dickens via de profundamente errado em seu tempo e no sistema econômico que via instaurar-se: os números tomavam cada vez mais uma prioridade que devia ser das pessoas.

É esse pensamento que embasa seu olhar sobre os proletariados, as “Mãos” das fábricas inglesas. Dickens sofre com o exército de pessoas que perde sua identidade dentro das fábricas, que cada vez mais existe apenas como número, como produtividade, como metros de tecido e quilos de carvão. Aqui, ele insere um trabalhador desgraçado que acaba sendo levado à morte pela insensibilidade do jovem ambicioso e insensível que perde dinheiro no jogo.

A frieza e a leviandade são os defeitos de certas figuras comuns na literatura de Dickens: personagens que, embora façam o protagonista sofrer, não são exatamente os vilões da história e são sofredores eles mesmos. É o caso da Estela de Grandes esperanças, e de Tom Gradgrind em Tempos difíceis. Privado de uma educação que lhe permitisse enxergar outros seres humanos e confinado com rigidez durante toda a vida, Tom torna-se perdulário, insensível e decide incriminar um trabalhador pobre pelo crime que ele mesmo cometeu. Stephen Blackpool tem uma vida, uma história, uma mulher alcoólatra e uma paixão, mas visto de cima, ele é sempre como um peão de jogo, algo a ser utilizado conforme a necessidade.

É essa desumanização a maior angústia de Dickens e o tema de Tempos difíceis. Em contraste com o equivocado, mas bem intencionado Gradgrind, temos o arrogante, estúpido e cruel Bounderby. O banqueiro que se orgulha de suas origens humildes casa-se com Louisa sem nunca conseguir vê-la e é a caricatura exata do narcisismo. É claramente o objetivo do autor – e o talento de Dickens para esse tipo de sátira é histórico –, contudo, Bounderby ocupa espaço demais.

A crítica é acida e embasada, no entanto é pouco para sustentar um romance interessante de mais de 300 páginas. Tempos difíceis começa ótimo, mas lá pela metade a sensação é de que o ponto já foi provado e o que temos que assistir é apenas Dickens ganhando a discussão. É uma discussão muito bem escrita, com personagens humanos e carismáticos, mas menos poderosa e mais esquecível do que outros livros do autor.