por Kim Doria

O assunto é ficção científica e este livro de Philip K. Dick sintetiza bem uma das características mais corajosas do gênero: o aspecto experimental (tomado aqui nos sentidos artístico e científico do termo) que a ficção assume diante de nossa realidade. O homem do castelo alto parece girar em torno de uma experiência sobre os rumos da história, com uma narrativa que se desdobra à medida que investigamos do que é feita a sociedade. Coragem parece um adjetivo justo, tanto pela ousadia de fazer perguntas provocativas sobre os rumos da história (ressaltando inclusive os aspectos narrativos em comum entre história e ficção) quanto pela consciência ética de assumir a responsabilidade política que o escritor tem diante do mundo ao seu redor.

Da mesma forma que um cientista conduz experimentos em torno de hipóteses, o escritor busca observar o funcionamento da sociedade (em aspectos sociais, culturais, econômicos) em uma versão alternativa de nossa realidade movida por uma questão que parece estar por trás dos maiores clássicos do gênero: “e se..?”. Este é o princípio por trás de livros como 1984, Eu, robô, Admirável mundo novo, Farenheit 451, Planeta dos macacos, dentre outros bons exemplos… Na literatura contemporânea, temos a obra de China Miéville (um bom exemplo é A cidade & a cidade, lançado pela Boitempo no ano passado) e a Trilogia de Martes, de Kim Stanley Robinson.

Essa pequena reflexão sobre os aspectos políticos deste gênero literário tão desvalorizado por “gente séria”1 pode parecer uma digressão, mas este é talvez o livro de PKD em que ela se faz mais presente. Apesar de traçar uma narrativa linear, não há grandes acontecimentos (apesar de uma catástrofe se avizinhar, de acordo com o oráculo…). Temos um certo tom ordinário, acompanhamos diversas personagens “secundárias” em pequenos dramas que vão sendo sutilmente articulados (e ainda temos novas peças surgindo passado um terço do livro!), mas as reviravoltas históricas são apresentadas através do contato dessas personagens com a imprensa e com figuras intermediárias. Essa trivialidade dá um certo teor realista a uma narrativa tão assumidamente fantástica que acaba provocando um tipo de curto-circuito entre a nossa realidade e a do livro. Como é fácil achar normal – e até mesmo natural – algo que sabemos ser falso! Ora, e não é exatamente este o tema das páginas que nós lemos esta semana?

Muito se fala sobre como PKD discute o que é realidade em sua obra, mas lendo O homem do castelo alto fico com a impressão de que a discussão diz respeito às construções narrativas do real (algo um pouco mais material do que metafísico). De que forma se constrói uma verdade? Do que é feita a história, se não de uma narrativa escrita pelos vencedores?

A leitura desta semana começa com uma reflexão sobre historicidade exposta por um empresário a uma amante. O empresário é proprietário de uma fábrica de réplicas de objetos históricos que alimenta um mercado negro de peças falsas voltado à elite japonesa colecionadora de antiguidades. Qual a diferença entre um objeto histórico e uma cópia? O que constitui a “historicidade” de um objeto? Em um golpe de mestre do mais puro e franco cinismo, a conclusão é simples: um documento que certifique a originalidade do objeto. O paralelo com 1984 e com o seu Ministério da Verdade é claro: quem controla o passado, controla o futuro. E em O homem do castelo alto, quem controla o passado é o mercado…

(Apesar do universo ficcional de O homem do castelo alto ser muito diferente daquele em que vivemos, sobretudo nos costumes e valores da sociedade, as semelhanças são inegáveis. O capitalismo imperialista levado às últimas consequências pelo nazismo que toma o globo parece uma radicalização dos rumos que nosso mundo vem tomando de 1989 pra cá. O extermínio da União Soviética pela Alemanha levou a uma humanidade que deixou de sonhar com dias melhores, buscando colonizar novos planetas porque este aqui já está perdido em impureza. O fato do romance ter sido escrito por um americano afinado com a contracultura em plena Guerra Fria não me parece casual – o livro parece esboçar através de uma distopia realista o que seria um mundo de pensamento único.)

É no meio desta conversa sobre historicidade que surge o livro dentro do livro: O gafanhoto torna-se pesado, de Hawthorne Abendsen, romance extremamente popular (proibido nos territórios sob influência alemã) que narra uma realidade alternativa na qual Alemanha e Japão perderam a guerra. Abendsen é um homem residente em um tal de um Castelo Alto e seu livro aparecerá na trajetória de todas as personagens. O curioso é que O gafanhoto não narra uma história que seguiu os mesmos passos que a nossa, estabelecendo portanto uma terceira realidade. Essas variações do pós-Segunda Guerra Mundial sublinham a mutabilidade da História, entendida de forma dinâmica e complexa – os rumos da história são fruto de todos e não apenas das lideranças políticas (distantes da narrativa do romance).

Falando em lideranças políticas, com a morte de Herr Bormann o Partei precisa decidir quem substituirá a liderança máxima da hegemonia germânica. Passamos por uma descrição minuciosa das principais forças políticas do Nazismo em uma passagem que parece deixar a ficção de lado e que lembra muito as dinâmicas partidárias de nossos tempos. Essas guerras dos tronos parecem influir pouco sobre o cotidiano das personagens que acompanhamos e é no meio deste cenário turbulento que chegamos a uma das passagens mais belas do livro: o choque cultural durante um jantar entre um comerciante americano e um casal de jovens ricos japoneses.

E vocês, do que gostaram mais nas páginas desta semana?

  1. Para quem quiser se aprofundar na reflexão, recomendo o indispensável artigo de China Miéville “Marxismo e fantasia”, publicado pela revista Margem Esquerda #23, disponível no site da Boitempo.