O primeiro livro de Isaac Asimov que conheci não fazia parte da Trilogia da Fundação nem das coletâneas de contos sobre os robôs e seu altruísmo positrônico. Antes de tudo veio uma obra de não ficção chamada Escolha a catástrofe, que encontrei aos treze anos num canto da biblioteca da escola. Foi aí que aprendi coisas muito edificantes: que a Lua se afasta gradualmente da Terra, que os raios cósmicos alteram o DNA e que um miniburaco negro poderia silenciosamente se alojar no centro do Sol, de onde consumiria aos poucos a nossa estrela.

A fim de perturbar a mente dos jovens leitores de forma organizada, Asimov dividiu as possíveis catástrofes em cinco categorias. As de primeiro grau seriam as de maior proporção, porém de mais longo prazo, como a inevitável morte térmica do universo, enquanto as de quarto ou quinto grau seriam mais iminentes, porém mais modestas, implicando apenas na extinção da espécie humana ou no colapso da civilização atual, respectivamente.

Embora uma das catástrofes mais caras a Asimov seja a transformação do Sol numa gigante vermelha (classificada no segundo grau), o escritor admite ser difícil temer uma ameaça que se encontra sete bilhões de anos no futuro. Nossas maiores preocupações, portanto, deveriam se voltar para os cenários apocalípticos que poderiam se desenrolar amanhã ou no próximo ano, como guerras, doenças e crises energéticas.

Como se seguisse esse conselho, a grande maioria dos artistas, seja da literatura, do cinema ou dos quadrinhos, concentra-se em catástrofes do quarto ou do quinto grau (as principais exceções seriam os desastres por impacto de asteroides e as mudanças climáticas não provocadas pelo homem, do terceiro grau). Dois exemplos recentes: o filme Expresso do Amanhã, que retrata um cenário de resfriamento súbito da Terra por interferência humana, e a série The Walking Dead, sobre um país tomado por zumbis, ambos baseados em originais dos quadrinhos.

De fato, como uma extensão da obra de Asimov, poderíamos dizer que as histórias do gênero servem como um indicativo dos medos prevalentes na sociedade. O período da Guerra Fria, por exemplo, foi repleto de relatos sobre a vida num mundo arrasado por armas nucleares, como os clássicos Malevil, do francês Roberte Merle, e Alas, Babylon, do americano Pat Frank. Nossas escolhas de catástrofes, ao que tudo indica, são condicionadas.

Para tornar essas impressões mais palpáveis, decidi fazer um levantamento informal de livros de ficção que abordam eventos pós-apocalípticos, desde a década de 1950 até os nossos dias, com base na lista disponível na Wikipedia. Seguindo alguns critérios de seleção1, foi possível chegar a 128 títulos, divididos em categorias conforme o tipo de desastre envolvido. Calculadas as frequências relativas por década, o resultado foi este lindo gráfico em que são representadas quatro das categorias mais relevantes2.

Gráfico Catástrofes

Como esperado, vemos que o período de 1950 a 1990 foi dominado pela ideia de que a civilização terminaria com uma troca generalizada de bombas nucleares. Na melhor das hipóteses, pelos temores da época, assistiríamos ao cogumelo atômico de uma posição privilegiada, como os personagens das capas de Alas, Babylon, de 1959.  Mas o que dizer do pico na década de 80? Confesso que precisei refrescar a memória (Google3) para lembrar que houve então a chamada “segunda Guerra Fria”, precipitada pelo início da guerra no Afeganistão, em 1978.

Alas Babylon Capas
Recomenda-se utilizar material de proteção adequado

O próprio Asimov parece ter sido influenciado por essa atmosfera. Em Escolha a catástrofe, publicado em 1979, depois de ressaltar a ameaça dos raios cósmicos, especialmente para as comunidades humanas no espaço, ele afirma que, dentre as catástrofes discutidas, a que “enfrentamos de forma mais iminente” seria uma guerra nuclear provocada pela disputa em torno do fim das reservas mundiais de petróleo, previsto para se esgotar num prazo de 33 anos (eu sei, Asimov, eu também acreditei nisso).

Portanto, parece despropositado temermos catástrofes em termos do universo, do Sol ou da Terra; não temos por que temer os buracos negros e as invasões extraterrenas. Em vez disso, devemos questionar se ainda nesta geração o suprimento de energia disponível atingirá um pico e começará a decair, embora tenha aumentado continuamente através da história humana. Devemos questionar, também, se isso não irá pôr um fim à civilização humana, gerar uma guerra nuclear devastadora e acabar com a esperança de salvação da humanidade.

 

Conclusão: o petróleo não acabou, mas a União Soviética sim. No período de relativa tranquilidade que se seguiu, as atenções se voltaram para possíveis desastres ecológicos, como inundações, tempestades e estiagens, que seriam provocados pela intervenção descontrolada do homem na natureza. Nenhum dos romances apocalípticos da década de 1990 alcançou grande reputação, mas um exemplo notável seria Mara and Dann, da nobelizada Doris Lessing, sobre um futuro em que as calotas polares derreteram, submergindo todos os continentes exceto a África.

Já a preocupação mais comum para as últimas décadas, tempos de SARS, H1N1 e Ebola, parece ser a de que uma pandemia elimine 99,9% da humanidade, como acontece em Oryx e Crake, de Margaret Atwood, e Station Eleven, de Emily St. John Mandel. Neste caso, o temor parece amparado por ocorrências reais da história, como o contágio dos povos indígenas americanos, que pode ter excedido a taxa de mortalidade de 90% em algumas regiões.

Por último: zumbis. É preciso falar sobre zumbis? Se você entrou em um abrigo nuclear durante a década de 80 e saiu apenas hoje, saiba que zumbis estão por toda parte. De início, apareceram nos livros apocalípticos como forças do Juízo Final, mas se consolidaram de verdade como uma subcategoria de pandemia, a exemplo do que ocorre em Guerra Mundial Z, de Max Brooks. No entanto, o gráfico acima aponta para o fim da hegemonia dos mortos-vivos na ficção – ou será que eles podem ressuscitar? (Desculpem.)

No fundo, o que o gráfico realmente parece mostrar é que há uma “lei da conservação do medo”. À medida que as circunstâncias se transformam, desmontando algumas potenciais catástrofes, as pessoas transferem seus temores para outras possíveis ameaças. O que conta é ter sempre algo com que se preocupar, em círculos de ansiedade, durante as noites em claro.

Hoje o livro de Asimov já está levemente ultrapassado. Não fala sobre inteligências artificiais vingativas como a de Robopocalypse, de Daniel H. Wilson, nem sobre grey goo, o desastre de terceiro grau que poderia ser causado por nanorrôbos autorreplicantes, coisas que incomodam até o renomado Stephen Hawking. Mas certamente teremos outras preocupações ainda mais originais antes que o Sol se transforme numa gigante vermelha.

Por fim, um consolo etimológico. Como Asimov explica na introdução ao livro, a palavra “catástrofe” era originalmente empregada na Grécia antiga para descrever o desfecho de uma representação dramática, que poderia ser tanto feliz como triste.

Numa comédia, o clímax é um desfecho feliz. Após uma torrente de incompreensões e mágoas, tudo se modifica quando os amantes repentinamente se reconciliam e se reúnem. A catástrofe da comédia é pois um abraço ou um casamento.

 

Escolha bem a sua catástrofe.

 

Algumas leituras

A semiprozine Beneath Ceaseless Skies  versa sobre fantasia literária, e de vez em quando publica uma pérola como “The Wizard’s House”, de Stephen Case. A sinopse do conto funciona como um trailer de Hayao Miyazaki: um jovem simples, mas curioso; uma fazenda de águas-vivas que flutuam ao vento; uma ameaça sinistra na forma de um deus-monstro de muitos olhos; um castelo nas nuvens onde dorme um antigo feiticeiro. Tudo isso costurado com uma sensibilidade digna do mestre dos animes.

Vale a pena também ler o conto “He Came from a Place of Openness and Truth”, de Bonnie Jo Stufflebeam, publicado na edição de janeiro da revista Lightspeed, que faz uma ótima releitura, com temática queer, das velhas histórias de alienígenas.

“Things You Can Buy for a Penny”, de Will Kaufman, começa de modo simples, como uma lenda rural sobre um poço abandonado no meio da floresta, com segredos do tipo “cuidado com o que você deseja”. Mas a história é perfeita no seu estilo, do início ao fim.

O onipresente Ken Liu retornou na edição de março da Clarkesworld, arriscando desta vez com uma história de super-heróis. Em “Cassandra”, a personagem-título desenvolve poderes de precognição, e acaba entrando em conflito com o superman padrão das redondezas (superforça, voo, uniforme – o pacote completo). Uma construção inteligente que confronta duas perspectivas: simplicidade ou complexidade moral; liberdade ou predestinação.

Catherynne M. Valente, autora de A menina que circum-navegou o reino encantado, publicado em português pela Edições Asa,  aparece com seu estilo inconfundível na novela “The Long Goodnight of Violet Wild”, serializada nas edições de janeiro e março da Clarkesworld. A história conta de forma poética o percurso da nowgirl Violet Wild por uma série de territórios de fronteira, cada um deles com a sua própria fauna semântica.

I don’t know what stories are anymore so I don’t know how to tell you about the adventures of Woe-Be-Gone Nowgirl Violet Wild. In the Red Country, a story is a lot of words, one after the other, with conflict and resolution and a beginning, middle, and, most of the time, an end. But in the Blue Country, a story is a kind of dinosaur. You see how it gets confusing.

 

Continuando a invasão da ficção científica chinesa, a segunda edição da revista Uncanny traz o conto “Folding Beijing”, de Hao Jingfang (tradução para o inglês de Ken Liu). Em uma Beijing dividida social, temporal e espacialmente em três classes (literalmente empilhadas fisicamente umas sobre as outras), o protagonista Lao Dao, nascido e criado entre os separadores de lixo, precisa contrabandear uma mensagem para o Primeiro Espaço. Típico caso de premissa absurda que serve a uma ótima história.

 

Sobre prêmios sabotados

Os principais prêmios de ficção especulativa já divulgaram seus indicados e, assim como ano passado, houve polêmica. Mais uma vez a ala da direita americana, liderada pelo escritor Vox Day, coordenou uma votação em massa para os prêmios Hugo. Resultado: os conservadores ocuparam, em maior ou menor grau, todas as categorias.

A posição dos demais fãs do gênero se divide agora entre tentar eleger os indicados que sobraram, fora da panelinha, ou forçar a vitória generalizada do “no award” (nenhum prêmio) como protesto.

Para a categoria melhor romance furaram o bloqueio The Goblin Emperor, de Katherine Addison, e Ancillary Sword, segundo volume da série de Ann Leckie que será publicada no Brasil pela Aleph. Provavelmente o prêmio ficará com Leckie.

Para saber mais sobre esse assunto, veja também o texto de Lady Sybylla, no Momentum Saga, e o de Lidiany CS, sobre a resposta de George R. R. Martin.

 

Lançamentos

O lançamento mais comentado dos últimos meses foi o novo livro de Kazuo Ishiguro, The Buried Giant. O escritor, que não publicava nenhum romance desde o consagrado Não me abandone jamais, escolheu desta vez um cenário de inspiração arthuriana, com direito a ogres e dragões. Frustrando as expectativas, o livro recebeu críticas negativas nos principais jornais. Ishiguro também despertou revolta nos fãs do gênero fantástico ao ponderar, em uma entrevista: “Será que vão dizer que isso é fantasia?”

Nos EUA as atenções agora voltam-se para The Grace of Kings, primeiro romance do multipremiado sino-americano Ken Liu. O livro tem sido comparado ao Guerra dos Tronos de George R. R. Martin tanto pelo enredo de intrigas medievais (embora de inclinação para a tradição oriental) quanto pelo escopo épico. Mais um calhamaço (são 640 páginas) para o deleite dos leitores.

 

  1. Para chegar à lista final, foram selecionados apenas os romances que retratam diretamente a sociedade pós-catástrofe. Foram desconsiderados os casos que mostram um esforço para prevenir uma catástrofe (estes melhor classificados como disaster thrillers) ou um cenário futurista distante que apenas faz referência a um desastre qualquer da sua cronologia (como livros da série Duna). Também foram desconsideradas as histórias que mostram sociedades puramente distópicas, aquelas que apresentavam catástrofes de menor grau, sem perda significativa de população ou nível tecnológico (como alguns livros de Phillip K. Dick) e aquelas com elementos mágicos. Mais de dois terços da lista da Wikipedia foi, portanto, desprezada. Para as entradas da década de 2010 foi necessário consultar também listas equivalentes do Goodreads. (Sim, deu um trabalhinho.)
  2. A fim de deixar o gráfico menos poluído, tive infelizmente de excluir a categoria “invasão alienígena”, bem como a de “desastres naturais”, ambas mais comuns nos anos 50 e 60.
  3. A propósito, o Google/Wikipedia foi previsto por Asimov na forma de uma Biblioteca Computada Global. Está lá, na página 360 da edição do Círculo do Livro.