Às vezes não entendo o que há de errado comigo. Sim, eu me empolguei com a chamada para leitura escrita por Gigio1 e, sim, bons amigos já tinham me indicado esse escritor de nome estranho, mas o fato é que: procrastinei. Podia pôr a culpa na experiência do clube de leitura anterior – por mais que tenha gostado do PKD, não o amei como esperava2 –, mas o fato é: sou desses leitores que não “funcionam” muito bem em clubes de leitura. Leio muita coisa ao mesmo tempo3 e raramente dou prioridade à leitura coletiva.
Ao menos consigo admitir: errei feio, errei rude. Miéville é O cara.
Saímos de uma história sobre uma realidade alternativa com um final aberto a diferentes interpretações para um livro policial – nada mau para os que queriam entrar no #leiascifi2015 sem sentir que estavam lendo ficção científica. Uma mulher desconhecida é encontrada morta – assassinada – em Besźel e o inspetor Borlú, nosso protagonista e narrador, é encarregado da investigação. A ambientação urbana, os trâmites burocráticos que impedem o avanço das buscas e até mesmo o jargão do meio4, nada disso é incomum para quem já fez uma maratona esperta de séries policiais.
Contudo, aos poucos somos levados a ver qual peculiaridade da história a permitiu participar do #leiascifi2015. Se a princípio ficamos na dúvida a respeito do que vemos, tal qual o Sr. Tagomi em O homem do castelo alto (vide item “A” do texto de Gigio), aos poucos Miéville nos dá oportunidade de confirmar ou não impressões, enquanto força personagens a “desver” para que não abram “brechas” e, com isso, cometam crimes – ainda precisamos de mais páginas para compreender melhor isso tudo. Sim, Besźel convive com Ul Qoma, cidades muito mais próximas – bota “muito” nisso – do que os territórios dos EUA divididos entre Alemanha e Japão na obra do PKD.
Dou ênfase ao verbo “ver” porque foi com alívio que prossegui na leitura de A cidade & a cidade e notei que o autor não se preocupava em explicar logo diversos conceitos, inventados para o universo/ambiente da narrativa, preferindo deixar o leitor mastigando-os até que venha a sacá-los. Show, don’t tell. A sensação de estranhamento, de aprender mais sobre as coisas no caminho, lembrou-me de Exorcismos, amores e uma dose de blues (Eric Novello) e de como algumas ideias sobre realismo simplesmente não me serviram durante essa leitura5. Reviver tal sensação era uma das coisas que queria com a hashtag do nosso clubinho.
O verbo “ver” também me dá oportunidade de apelar rapidinho para o série-maníaco que habita em todos nós. A investigação questionando fronteiras me fez pensar no piloto do seriado escandinavo Bron/Broen (The Bridge), enquanto a visão do outro lado da cidade é bem a cara de Fringe, com seus universos paralelos. O que mais me chamou a atenção, no entanto, foi Corwi – cada aparição da moça me fez gostar dela tanto quanto gostei da perspicaz e boca-suja Debra Morgan, de Dexter. Depois do PKD, estava precisando ver mais personagens femininas fortes – e, ao que tudo indica, Corwi não será a única do livro.
Nos vemos semana que vem? Espero que sim.
- Os textos do rapaz invariavelmente fazem isso comigo. ↩
- Mas não desanimei por completo. Espero ler ao menos Ubik – parece mais a minha cara – e Realidades adaptadas – que reúne histórias que inspiraram filmes que me aproximaram de meu irmão. ↩
- Nos últimos dias, li Tales from Other Suburbia e Lost & Found (leiam tudo que puderem desse Shaun Tan, sério), tudo de Saga (Brian K. Vaughan e Fiona Staples precisam lançar logo o volume 5!), Frank Einstein e o motor antimatéria, The Wicked + The Divine, comecei Aniquilação e O círculo (mesmo tendo lido a resenha da Camila), e retomei a leitura de A história secreta. Ufa. ↩
- A acentuação esquisita me lembrou de Deixa ela entrar, de John Ajvide Lindqvist; os termos inventados me lembraram o nadsat de Laranja mecânica, mas isso pode ser culpa do tradutor. ↩
- Há mais coisas entre China Miéville e Eric Novello do que julga nossa vã filosofia. Penso, contudo, que o tema valeria um texto à parte. ↩
Também estou gostando bastante do livro. É inacreditável como o Miéville consegue fazer funcionar essa ideia de duas cidades no mesmo espaço físico. A coisa é tão absurda que durante muito tempo ainda fiquei esperando alguém gritar “a-ha é tudo mentira, pode pisar do outro lado da linha se quiser”.
Nem fiquei tão interessado na investigação. Gostei mesmo das cenas que ressaltam a interação entre as cidades, como aquela sobre um café que é dividido em duas partes.
Agora estou esperando para descobrir como funciona a terceira cidade. Imagino algo como aqueles teatros de fantoches em que os manipuladores se vestem todos de pretos. Supostamente invisíveis. (Porque Orciny tem que existir. Tanto a capa brasileira quanto a inglesa entregam isso, com aquela espécie de meteoro flutuando entre as duas cidades.)
Cara, confesso que ainda tô tentando entender como funcionam. Gostei do capítulo 6 (ou foi no 5?) porque a gente começa a sacar mais a respeito da interação.
O que eu gosto da investigação é que, se não fosse ela, a parte do “show, don’t tell” não seria tão bem-elaborada. O cara tá demonstrando ser um monstro sagrado, convenhamos.
Acho muito legal como essas diferenças são abordadas também, Gigio. Um comentário sobre a arquitetura aqui, sobre comidas típicas ali, e até a ideia a princípio absurda de que existem bairros de imigrantes de uma cidade na outra (que estão a nenhuma distância uma da outra!). É legal como a história não se apoia demais no conceito das duas cidades, tocando aos poucos no assunto. E também como esses assuntos de Brecha e desver são tratados com naturalidade pelos habitantes.
E a Corwi ser uma Debra Morgan é algo que não tinha me ocorrido antes, mas vai ser a imagem que vou ter dela até o fim do livro.
Gente, quem é Debra Morgan? (Ok, já procurei, é a moça de Dexter.)
Com certeza, Pedro, para mim as cidades são “personagens” até mais importantes que os detetives… Mas o seu comentário me lembrou uma coisa: já vi gente reclamando da tradução, incluindo os neologismos, como “desver”. O que você achou? Tá fluindo a leitura? Gostou dos termos novos do Miéville? E da tradução do Fábio Fernandes?
Eu ainda tô tentando entender direitinho, mas, bah, concordo nisso: “É legal como a história não se apoia demais no conceito das duas cidades, tocando aos poucos no assunto”.
(Tomara que a Debra não atrapalhe a leitura. Tô adorando a Corwi, tanto quanto a Debra.)
Eu não sei se vocês repararam, mas na última página do livro tem uma nota do Fábio Fernandes a respeito da tradução.
O que achei interessante é que aos poucos o grande mistério do livro deixou de ser o assassinato e se tornou o funcionamento dessas duas cidades e como elas coexistem. Ainda não consigo imaginar como “desver” o tempo todo o outro país não provoca ainda mais acidentes do que os relatados.
(Não consegui acompanhar no tempo certo “O Homem do Castelo Alto”, mas estou achando demais esse clube de leitura 🙂
Que bom que você está gostando da discussão, Adriana! Eu também acho que na prática seria impossível escapar cometer vários equívocos ao longo do dia. Acho que preferiria não cumprimentar ninguém na rua, em vez de correr o risco… Mas o Miéville consegue ser muito convincente! E o interessante é que agora que as duas cidades têm dois mil anos de separação, os habitantes de fato têm costumes e sociedades diferentes, de modo que dá pra imaginar que uma reunificação seria mesmo complicada.
Li a nota do Fábio Fernandes e gostei da explicação dele. Acho que ele fez um bom trabalho.
Boa noite pessoal. Estou gostando muito do livro , está difícil respeitar a sequência do clube de leitura mas vamos lá. O grande lance do livro para mim (pelo menos inicialmente) é a coexistência das duas cidades no mesmo espaço. Eu na verdade ainda não consegui entender completamente como as duas cidades “se habitam”. Logo no começo, quando o inspetor Borlú chega a cena do crime já temos a primeira vez em que ele desvê algo e fico tentando entender se são dimensões que se esbarram ou vidas que se ignoram. Ele vê uma pessoa que não poderia ver pois ela não é da cidade de BEszel. Vou acompanhar como o autor vai nos mostrar isso. Já li o Rei Rato e o China Miéville sabe bem descrever locais, sua prosa eu a considero muito boa e a sua leitura é muito agradável pois nos prende.
Algo que me chamou a atenção e me fez pensar: Uma menção a Ataturk. Ataturk foi o fundador da república turca. Quando proclamou a república, Ataturk pôs um fim aos califados e proclamou um estado laico na Turquia. Interessante quando pensamos que Istambul, talvez a cidade mais famosa da Turquia esteja situada exatamente entre dois mundos: o ocidental e o oriental. Istambul já foi Constantinopla e Bizâncio. No centro de Istambul temos a Mesquita Azul e a Catedral de Santa Sofia, uma de frente para a outra. Santa Sofia inclusive já foi uma mesquita, tornou-se católica e hoje é um museu. Lindo por sinal, vale muito uma visita.
Será que teremos mais menções?
E entrando um pouco nos comentários acima, penso que a trama do assassinato vai cair como uma luva para que possamos entender o funcionamento das cidades pois a história da vítima provavelmente vai nos guiar pelo mundo das cidades e quem sabe nos explicar algo que eu ainda não consegui pegar no livro: porque as duas cidades estão assim? O que aconteceu para que elas se encontrem nesse estado de simultâneo espaço?
Um livro muito bom, vamos continuar a leitura.
Oi, Eduardo! Sempre lembro de Istambul também. Acredito que deve ter sido uma das inspirações para o Miéville. Num dos capítulos das discussões desta semana (semana 2), ele volta a comentar de Ataturk. Ele comenta que Ul Qoma teve um ditador no início do século passado, o qual deu nomes de
ditadoreschefes de estado célebres aos três filhos: Ataturk, Mao e… esqueci o terceiro. Talvez seja relevante mais tarde para a trama?Aproveitando sua menção à Catedral de Santa Sofia, uma coisa que estava reparando esses dias é que o Miéville não comenta nada sobre as religiões de Beszel e Ul Qoma (ou será que eu perdi a referência?). Acho que ele não quis levar a discussão para esse lado, mas nos casos reais de cidades divididas (exemplo máximo sendo Jerusalém), o conflito entre as duas culturas costuma ser ainda mais agravado por essa separação religiosa.
E também gostaria que o Miéville contasse sobre a origem das cidades. Não sei se ele vai explicar tudo, mas quanto mais informações ele der sobre esse cenário incrível que ele criou, tanto melhor!