Esta semana continuamos a discussão de A cidade e a cidade cobrindo os capítulos 7 a 13. Nessa parte do livro descobrimos que a morte de Mahalia Geary pode não ser um simples caso de brecha, e a investigação se estende para o território de Ul Qoma.

Exceto pela estranha participação dos pais de Mahalia (que talvez estejam ali para mostrar que a Brecha não é um delírio coletivo dos habitantes das duas cidades), esses capítulos se enquadram bem naquela fase das histórias policiais em que nossas suspeitas, como detetives-leitores, são lançadas de um lado ao outro, até que nada mais pareça fazer sentido. Faz parte do gênero: o mesmo sentimento pode ser experimentado durante uma temporada de True Detective, ou nos minutos intermediários de um episódio de CSI ou de Scooby-Doo! Mistério S/A.

Vamos imaginar que exista em algum lugar uma escola de roteiristas de histórias de detetive. A apostila desse curso apresentaria um índice sugestivo, com títulos e subtítulos mais ou menos assim:

1. Introdução: sete dicas para um crime original
2. O suspeito principal: como fugir do estereótipo do marido traído
3. A trama se complica: confundindo a mente das pessoas
4. A revelação: como inserir novos fatos sem provocar indignação
5. A perseguição: o que fazer para criar a sua própria cena de correria louca
6. O fim: juntando todas as pontas (ou não)

Já ultrapassamos a primeira etapa (o corpo de uma mulher desconhecida encontrada numa região degradada de Beszel), e também a segunda (“foi a Brecha!”, eles disseram). É hora de complicar um pouco as coisas.

Desde a época em que devorava em série os romances de Agatha Christie, essa fase número três foi sempre para mim a mais frustrante. Nesse estágio, o livro nos faz acreditar que podemos sim resolver o mistério, e muito antes que o ingênuo protagonista da história. Está tudo aqui, ele parece nos dizer: você não percebeu que o Coronel Mostarda está mentindo? Não reparou que a Srta. Rosa tinha uma área mal bronzeada onde ficava o colar de pérolas, aquele que foi rasgado quando ela empurrou o Professor Black do penhasco? “Não”, eu invariavelmente respondia, perdido entre tantas outras pistas falsas, enquanto Miss Marple ou Poirot expunham sua perspicácia investigativa.

Mas, enfim, vamos tentar outra vez. Se considerarmos que Miéville segue os princípios básicos das histórias policiais, então o criminoso, ou ao menos um cúmplice, já foi apresentado. Façamos então a relação dos suspeitos.

A Brecha. Suspeito número 1. Elemento de natureza ignorada responsável por garantir a obediência aos limites entre Beszel e Ul Qoma. Inocentada a princípio por um inexplicado vazamento de informações a respeito da van em que a vítima foi transportada.

Major Syedr. Representante da extrema direita de Beszel. Relata-se que foi o único membro da Comissão de Supervisão a celebrar que a hipótese de brecha tenha sido descartada.

Commissar Gadlem. Chefe de Borlú. Faz o tipo burocrático de agente policial. Segundo estatísticas da ficção, 68% dos comissários de polícia estão envolvidos nos crimes de suas respectivas obras.

Profª. Nancy. Orientadora de Mahalia. Excessivamente cooperativa, insinua que a vítima tinha um trabalho pouco relevante e cultivava desafetos. Pode ser simplesmente uma orientadora normal que despreza seus alunos ou alguém que pretende tirar o foco de si.

Detetive Sênior Dhatt. Não parece cooperar completamente com a investigação de Borlú. Candidato ao papel de Denzel Washington em Dia de Treinamento.

Prof. Bowden. Professor que teve a carreira arruinada pela pesquisa envolvendo o mistério de Orciny. Autor de “Entre a cidade e a cidade”. Faz o tipo “sou muito velho e sofrido para ser suspeito”.

Guarda Aikam Tsueh. Jovem de dezenove anos supostamente envolvido com os estudantes do sítio arqueológico. Tem contra ele o fator “personagem que poderia ter ficado calado, mas se oferece gratuitamente”.

O que vimos até aqui em A cidade e a cidade parece sugerir que ao menos duas pessoas estão envolvidas no assassinato de Mahalia: um responsável direto em Ul Qoma e um cúmplice em Beszel, alguém com acesso privilegiado ao banco de dados do governo. Quem poderiam ser? Bowden e Syedr? Nancy e Gadlem?

A lição dos grandes detetives da ficção é que para entender corretamente as pistas é preciso conhecer a motivação por trás dos acontecimentos. Existe algo como uma epistemologia do crime: nossa percepção precisa ter a chave para ordenar adequadamente os fatos. Em outras palavras, as coisas só fazem sentido quando vistas pelo ângulo certo. Para um exemplo máximo, vide O sexto sentido.

No enredo de A cidade e a cidade, o que se sugere de início é que Mahalia seria uma revolucionária, uma iconoclasta, o que levaria naturalmente à conclusão de que ela havia entrado impropriamente em Beszel, provocando a punição fatal da Brecha. Pondo de lado essa explicação das coisas, o que poderia ter motivado o assassinato? O que ela haveria descoberto?

Vamos ver se na próxima semana temos um pouco da fase 4 – a revelação. Aguardo em especial para saber o que Borlú descobrirá no livro dentro do livro, “Entre a cidade e a cidade”…