18 de junho de 2015: o dia em que Mário de Andrade saiu (ou melhor, foi tirado) do armário. E daí? Saiu ao público a chamada “carta secreta” de Mário para Manuel Bandeira – ou Manu, seu apelido –, que até hoje se encontrava escondida na Fundação Casa de Rui Barbosa, a pedido da família, pelo que dizem. Após certa movimentação judicial, iniciada por um jornalista, com base na Lei de Acesso à Informação, o texto foi finalmente revelado. Não é só um texto nem uma carta, mas também um documento (histórico) e – por que não? – um texto de Mário de Andrade, com seu estilo epistolar todo especial. E bonito, claro.

E daí? A carta, como todos esperavam – porque os boatos sempre chegam cedo –, realmente trata da homossexualidade do escritor. Sim, bem assim, direto ao ponto. Não se trata mais de um dos “indícios” sempre apontados pela crítica a partir da sua correspondência e também da sua literatura, indícios esses que agora se tornam automaticamente parte de uma estrutura toda coerente para o leitor. Nunca mais leremos nada seu do mesmo jeito. O que para alguns era só um boato é agora fato. As descrições dos corpos dos indígenas (homens) e da “flor inserida no…” de outro índio em O turista aprendiz podem ter todo um outro significado a partir de hoje. Mário é, finalmente, um escritor gay. Mas e daí? Essa é a questão. No fundo, nada muda, mas também tudo muda.

Muitos esperavam que Mário fizesse um coming out todo macunaímico, carnavalesco, como sua literatura em geral é (ou dizem ser), mas não foi o caso. Também esperavam uma declaração de amor para Manuel Bandeira (ou talvez fosse só eu). A realidade é, porém, mais triste. Na carta, que já havia sido revelada em parte ao público, sendo na verdade censurada por Bandeira (justamente a parte sobre a sexualidade do escritor), vê-se que Mário saiu do armário – ao menos para um amigo – bem triste com isso.

Talvez isso pareça incompreensível no olhar de alguém que não seja gay ou que não conviva em um ambiente homofóbico, mas se pode imaginar muito bem que, na São Paulo do início do século XX, não era nada bonito que um rapaz gostasse de outros rapazes. Essa é a tristeza da carta. O escritor, apesar de rejeitar discursos “normalizantes”, se aceita com melancolia, sem deixar de mencionar todas as agruras de ser homossexual em sua época. É preciso reforçar isso e talvez evitar a descontração de alguém como o biógrafo do escritor, Eduardo Jardim, que diz que, agora que sabemos de tudo, podemos falar de outras coisas. Esse discurso só deixa de dar a devida atenção para o fato que, sim, as pessoas se sentem atraídas por isso por algum motivo, que é a “anormalização” da homossexualidade. E é justamente isso que Mário rejeita, deixando a dica para os seus leitores.

Ainda que o escritor declare não ver problemas em ser gay, não deixa de dizer que se trata de uma questão pessoal, do âmbito privado, incorporando para si um discurso moralista. Como bom homem da sua época, criado em um contexto conservador, é de se esperar que ele trate tudo nesses termos – o que faz com que, inclusive, fale da falta de “nobreza moral” da parte de Oswald em outra parte da mesma carta. Daí a melancolia de Mário: falam mal dele e querem invadir sua vida, e essa é a razão de querer se recolher em sua privacidade; ao mesmo tempo, ele não consegue ter uma vida sexual e amorosa pela repressão dos outros (e por uma consequente autorrepressão). Nem mesmo na literatura há espaço para se expressar livremente sobre o assunto, ainda que vejamos “indícios”.

Em pleno ano de 2015, devemos reconhecer esses problemas e não deixar de lado o fato de que, sim, Mário é homossexual, e de que na nossa sociedade isso ainda quer dizer muita coisa. Devemos estar atentos, de agora em diante, para todas as leituras feitas sobre sua literatura e criticá-las caso partam do ponto de vista de sua sexualidade com pressupostos também moralistas e que possam nos induzir a ler o escritor de um modo discutível. E olha que tem muito jeito de se fazer isso se pensarmos em todos aqueles “indícios”. Em tempos de ascensão do conservadorismo, até mesmo as escolas poderão apagar um traço da vida do autor que talvez não seja conveniente (ou até mesmo deixar sua obra de lado). Mário é um escritor gay, mas e daí? E daí que talvez isso diga mais sobre nós do que sobre ele.