Save de date: julho será o mês dos clássicos aqui no Posfácio. A cada semana, um dos nossos colaboradores trará a resenha de um livro considerado clássico da literatura mundial. Sem spoilers, só adianto que tem muita coisa boa a caminho, de grandes autores e gêneros diversos. Mas o que faz de um livro um clássico? Quem foram essas pessoas que escreveram obras atemporais e universais e como elas fizeram isso? Essas são algumas das perguntas que tentaremos responder em nossos textos, e se a iniciativa der certo, nada impede que se estabeleça esse projeto como fixo em nossa grade, fazendo de julho um mês sempre especial, em que os monstros sagrados da literatura estarão em debate.

***

Iniciando os trabalhos, hoje lhes apresento A letra escarlate, obra de 1850 do estadunidense Nathaniel Hawthorne (1804-1864), conhecida por abordar a colonização puritana dos EUA e por trazer aquela que é considerada a primeira mulher como protagonista na literatura daquele país.

Segundo nos informa o excelente posfácio de Nina Baym – presente na edição de 2010 da Penguin Companhia utilizada neste texto, e que por si só renderia uma resenha –, embora o autor tenha vivido cerca de dois séculos depois do período puritano nos EUA, sua biografia se relaciona diretamente à história de seu livro: Nathaniel nascera em Salém, Massachusetts, cidade icônica pelos episódios de caça às bruxas no século XVII, dos quais, mais tarde, o autor descobriu que sua família fizera parte. Assim, a fim de se afastar do funesto histórico familiar, adicionou um W ao seu sobrenome, artifício que mais tarde usaria em sua personagem mais famosa, Hester Prynne, a heroína deste livro, maculada em sua comunidade pela adição de uma letra à sua figura.

Consta que seu desejo em se fazer um escritor de sucesso demandou mais de duas décadas de labuta com afinco, tendo encontrado sua plena realização neste livro, à parte de outras boas obras publicadas. Ainda que considerado um clássico, tal reconhecimento nunca se traduziu em sucesso financeiro, tendo lhe rendido apenas $1.500 dólares diante de 7.8 mil edições vendidas. “Numa época em que a maioria das pessoas não sabia ler e apenas algumas poucas tinham dinheiro para comprar livros” (p. 292), tornar-se um best-seller era realmente um desafio.

Outro ponto importante de sua personalidade foi a intensa insegurança com seu trabalho, que causou a destruição de inúmeras obras em andamento e a não conclusão de várias outras. Quando funcionário da alfândega de Salém, importante porto no século XVII, viu-se diante de “uma crise econômica e intelectual” (p. 296) que ceifava sua criatividade produtiva diante de uma rotina maçante. Porém foi dessa experiência que nasceu o clássico posfácio de A letra escarlate, intitulado justamente como “A alfândega”, que rendeu polêmicas por citar figuras públicas, ao mesmo tempo que chamou atenção para o livro.

Foto do autor com 58 anos, em 1862: “Não sei se esses meus ancestrais chegaram ase arrepender e pedir perdão aos céus por suas crueldades; ou se agora, em outro estado de ser, lamentam as consequências divinas de seus atos”, diz ele na Introdução (p.18-19)].
Foto do autor com 58 anos, em 1862: “Não sei se esses meus ancestrais chegaram ase arrepender e pedir perdão aos céus por suas crueldades; ou se agora, em outro estado de ser, lamentam as consequências divinas de seus atos”, diz ele na Introdução (p.18-19)

A importância histórica dessa narrativa está em retratar o período de estabelecimento dos puritanos ingleses nos EUA, trazendo consigo não apenas uma forma de vida, mas uma moral subjacente. Contudo, o que sobressai no livro – além, é claro, da complexidade dramatúrgica e profundidade da trama – é a intensa ironia de seu autor que, embora escrevendo nos Oitocentos, não deixa de rechear suas linhas com um forte humor negro e críticas afiadas à violência daquela sociedade.

Logo de início vemos a protagonista, Hester Prynne, num episódio público de punição, exposta “no pedestal da vergonha” (p. 83) diante de “esposas e donzelas nascidas e criadas à boa e velha maneira inglesa (…) uma gente para a qual religião e lei eram quase a mesma coisa” (p. 64, passim), incapazes de qualquer piedade religiosa, mas regozijantes por testemunharem a desgraça daquela mulher. Somando-se a essa narrativa enviesada elementos simbólicos e associativos belamente construídos pelo autor – que, por exemplo, ligam a multidão à imagem da cadeia (“um povo construtor de prisões e cemitérios”, p. 9) e a protagonista à imagem de uma flor –, nossas perspectivas acerca dos personagens são constantemente direcionadas sob total controle de Hawthorne, demonstrando sua profunda maturidade técnica de nos manipular, à mesma medida em que nos dá liberdade para imaginar todo aquele universo.

Ela tomou o bebê num dos braços e, com o rosto queimando, um sorriso arrogante e o olhar de quem não se deixaria humilhar, encarou a gente de sua cidade e os vizinhos que a rodeavam. No peitoral da túnica, em tecido vermelho fino e adornado por um elaborado bordado e fantásticos floreios em linha dourada, trazia a letra A. (p. 67)

 

A letra “A” no peito de Hester se ergue por “adúltera”, transformando-a em símbolo da ignomínia, tema do sermão aos domingos (p. 100). Enviada da Europa aos EUA pelo marido, que viria em seguida, mas que desapareceu junto ao navio na travessia, Hester teve uma filha ilegítima de pai desconhecido (pela comunidade, mas não pelos leitores). Ainda que viúva, é condenada pelos chefes comunitários pelo crime de adultério, pelo qual teria de usar um “A” bordado às roupas em todas as suas atividades públicas: “Assim, as jovens puras seriam instruídas a olhar para Hester, a letra escarlate queimando-lhe o peito (…), como a imagem, o corpo, a realidade do pecado” (p. 93). Não é necessário dizer que, àquela época, aquilo representava a total desgraça, mas acima de qualquer vergonha ou autocomiseração, acima da covardia de seu amante em assumir a paternidade e lhe ajudar na vida, Hester tinha algo muito mais importante, uma pérola por quem era responsável: sua filha Pearl.

A menina Pearl, por vezes chamada de “demônia” e “cria do pecado”, era bela e extravagantemente vestida pela mãe, num ato quase que de afronta social. Seu comportamento é sempre interessante e muito simbólico: em dada cena (minha predileta em toda a narrativa), quando Hester conversa com seu amante na floresta, sua filha ganha destaque em poética representação, tendo sua imagem transformada em um grande e vivo “A”, rodeando sua mãe tal qual um demiurgo do pecado: “Um hieróglifo vivo no qual se revelava o segredo que tão sombriamente procuravam esconder” (p. 230). O próprio comportamento da menina é ricamente construído como o de uma figura difícil, que se torna verdadeira punição à mãe. Em certa altura, quando a mãe se rebela e arranca o “A” de sua blusa, a menina reage com fúria, obrigando Hester a botá-lo de volta (p. 234). Em outras palavras, a menina é a própria letra escarlate: manifestação viva e reiterada da consciência culpada de sua mãe.

Feliz és tu, Hester, que exibe a letra escarlate abertamente no peito! A minha queima em segredo! (p. 214)

 

A ideia do pecado aqui também é fortemente explorada. Estamos diante de um drama de culpa e sofrimento. Mas como bem aponta Nina Baym em seu já exortado posfácio à obra (p. 305 passim), o pecado é diferente para cada um dos amantes, pais de Pearl, pois cada um reage de forma distinta: à medida que Hester torna-se essa figura forte e independente, diferenciada da severidade moralista de sua comunidade, notadamente uma mulher para a qual “a lei do mundo não governava sua mente” (p. 183), a letra “A” marcada em seu peito vai sendo resignificada, de “A” de “adúltera”, para “A” de “abençoada”. Já seu amante, figura central daquela comunidade, vai se transformando em um demônio de culpa e sofrimento, adoecido pelos males mentais, angustiado e acovardado.

Aquele não era um tempo de delicadezas. (p. 99)

 

Com mais de cento e cinquenta anos de existência, a obra de Hawthorne inspirou uma série de releituras, desde no cinema, cujas adaptações datam desde 1911 (passando pela terrível versão de 1995, com Demi Moore como Hester Prynne), até no teatro e na pintura, como as leituras de Huques Merle, já em 1861.

Hugues_Merle_-_The_Scarlet_Letter_-_Walters_37172
The Scarlet Letter, de Hugues Merle (1862).

Como todo clássico que se preze, A letra escarlate ainda hoje é dotado de polêmicas e interpretações conflituosas, por uns exortado como magnus opus de um período, por outros acusados de superestimado. Contudo, de fato trata-se daquelas obras surpreendentes com a qual nos deparamos em algum momento da vida e com a qual de início podemos ter preguiça ou certa má vontade, especialmente nós, brasileiros, que nada temos a ver com o puritanismo, mas que vai conquistando o leitor em cada página com sua narrativa crítica e irônica, transformando-se em ferroada forte à constituição da sociedade estadunidense.

A máscara de pureza não passava de uma mentira, e de que, se a verdade fosse revelada por todo lado, brilharia uma letra escarlate em cada um dos muitos bustos. (p. 101)