Seguindo com o mês dos clássicos, chegamos a uma narrativa que, de forma consciente, propõe-se a ser o tratado de uma época. Quando foi publicado, O vermelho e o negro trazia o seguinte subtítulo: “crônica do século XIX”, substituído posteriormente por “crônica de 1830”.

Não é pouco importante essa delimitação de período, nem o país em que o livro é escrito. Toda a literatura francesa do século XIX trata, analisa e se obceca com as possibilidades da mobilidade social.

Faz sentido. A França é, afinal, o país que derrubou a aristocracia à força, instaurou a modernidade política com armas e tornou-se um império nas mãos de um governante que começou como pouco mais que um cabo do exército. A figura de Napoleão, aliás, é tão notável que se tornará onipresente na literatura francesa da época e transbordará até na Rússia: Guerra e paz trata essencialmente das guerras napoleônicas.

O novo mundo que se abre no século XIX e, principalmente, as possiblidades que isso traz a jovens ambiciosos, foram o tema de diversos romances franceses. Rastignac, persongem de O pai Goriot de Balzac, tornou-se quase sinônimo de ambição na língua francesa. A expansão dos horizontes e sua subsequente constrição, causada pela restauração da monarquia, assim como a certeza de que algo voltaria a explodir no país, são os motores desses dois clássicos.

Mas Julien Sorel se distingue de Rastignac em algo fundamental: ele falha. E é isso que o torna ao mesmo tempo mais emblemático e mais real. Balzac, ao propor-se pintar as “cenas da vida parisiense”, trabalha com tipos, personagens em que um traço é exagerado em detrimento dos outros e cuja trajetória é guiada por essa característica sem desvio. Não são personagens rasos, são mais homens obcecados, mas que se diferenciam da multidão de conflitos que habita Julien Sorel.

A comparação com Balzac é importante porque O vermelho e o negro é considerado o primeiro romance realista francês, sendo o realismo a escola da qual Balzac tornaria-se mestre. É justamente sua posição inaugural e seu lugar ainda em transição quanto ao romantismo que tornam o livro de Stendhal um tratado muito mais psicológico, onde Balzac será sociológico. Stendhal monta um panorama do século XIX não observando os movimentos e fluxos gerais, mas os redemoinhos no interior de um jovem.

Julien Sorel é o filho de um carpinteiro enriquecido, nascido em um vilarejo perto da Suiça. A posição de seu pai é sintomática da época, assim como as ambições do filho: o carpinteiro enriqueceu e tornou-se um pequeno burguês, no entanto, ainda mantém os hábitos simples e rudes de um camponês. Mais do que dinheiro, Julien aspira à grandeza. Sua fascinação com a figura de Napoleão parte muito da escalada empreendida pelo homem, mais do que de sua posição final. Julien quer ser nobre em um mundo em que isso significa pouco mais que uma aura vazia, e é esse esvaziamento que causará sua tragédia.

O título refere-se às duas opções de um jovem humilde para alcançar a grandeza: o vermelho do exército e o negro do clero. Frequentemente Julien se lamenta que, tendo vivido um pouco antes, poderia ter encontrado a glória no exército de Napoleão, que concedia patentes independente de títulos de nobreza. No entanto, vivendo na Restauração, só lhe resta escalar a hierarquia eclesiástica.

Essa escolha é movida por uma ambição total e uma vocação nula. O resultado fatal é que o sexo e as paixões coloquem-se no seu caminho. Julien primeiro terá um caso com uma mulher mais velha, rica, mas de nobreza insignificante, do qual sai sem maiores dificuldades que o profundo remorso dela. Mais tarde, ele seduz a filha de um marquês, jovem e, assim como ele, transtornada por ideias de grandeza. É descoberto e, em um ato inexplicável mesmo dentro do romance, atira em sua primeira amante, o que o leva à forca.

A diferença entre as duas amantes e os dois desfechos é significativa: a burguesa prática, sensata, assombrada por ideias de propriedade e religião, o perfeito retrato que será repetido muitas vezes depois da “pequena burguesia” como o bastião da constância. Por outro lado, a jovem nobre vive da nostalgia de outros tempos, quando duquesas tinham amantes escandalosos e grandes reis eram feitos por suas cortesãs. No mundo simples da democracia, ela aspira ao drama e acaba por consegui-lo.

Dividido entre as duas mulheres, Julien é ele mesmo um intermediário entre esses mundos: ele é um burguês, um liberal, um partidário de Napoleão, alguém que acredita na ascensão por méritos próprios e qualidades como a cultura e a inteligência. Por outro lado, o sucesso do burguês não o interessa, como comprova o desprezo que ele sente por um amigo comerciante. Julien quer ser rico, mas quer mais ainda estar em uma esfera superior. Infelizmente ele nasce em um mundo em que essa esfera está se desfazendo.

A força e o gênio do romance de Stendhal residem nesses entrelaçamentos. Nas costuras que vão formando um panorama sutil de uma França mal-arrumada que explodiria ainda em 1830. A busca do autor é, de certa forma, radiografar o que levou o país à revolução liberal naquele ano. E radiografar a França do século XIX é radiografar o centro das ideias do mundo, das ondas que se espalhariam. O interior de um padrezinho, dividido entre ideais antiquados de grandeza, visões românticas de amor e ideais libertários de política é o verdadeiro panorama do século XIX.