Em continuidade à nossa série de textos sobre os clássicos, voltamos agora à França do século XVIII para falar de Jacques, o fatalista, e seu amo. Escrito pelo célebre enciclopedista Denis Diderot, o livro marca a literatura como um cruzamento de diversas tendências, dos contos de amor aos romances de cavalaria, das formas medievais às contemporâneas, com elementos de sátira, crítica social e reflexão filosófica.

A narrativa se desenvolve como uma longa conversa entre o valete Jacques e seu amo (o qual nunca vem nomeado). Os dois partem em viagem, mas desde o princípio o narrador intervém para dizer que não importa entender como teria se formado essa parceria ou com que fim seguem em frente.  O diálogo começa em seguida, e o leitor tem de inferir que, para diminuir o tédio da empreitada, o amo espera que o companheiro lhe conte suas histórias amorosas.

Tal relato, no entanto, só será concluído ao final do livro. Diderot, inspirando-se confessadamente em A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy, leva ao máximo o artifício da digressão, entremeando entre os relatos de Jacques outras tantas histórias de amor, vingança e perfídia.

Jacques, o fatalista, e seu amo, foi publicado pela primeira vez de forma completa em 1796 e se enquadra no pensamento iluminista. De maneira semelhante à de Voltaire, quando satiriza a doutrina leibniziana do “melhor dos mundos possíveis” em Cândido, o “fatalismo” de Jacques funciona antes como uma defesa da liberdade individual. Ainda que o valete repita sempre, como um bálsamo para todas as suas desventuras, que tudo “está escrito lá em cima”, ele reconhece que nem por isso deixa de agir deste ou daquele modo e, conforme as consequências, de rir e de chorar.

Jacques, falastrão e desinibido, e seu amo, discreto e inquisitivo, fazem uma parceria que o próprio narrador compara à de Don Quixote e Sancho. À certa altura, os dois até mesmo entram numa discussão para definir quem seria o verdadeiro mestre e quem o verdadeiro servo. Jacques pretende mostrar que seu empregador, tendo se acostumado às irreverências do valete, a ponto de não poder mais abandoná-lo, tornou-se inferior em todos os aspectos, exceto no título. O amo, afinal, aquiesce.

Ainda no espírito do iluminismo, Diderot critica fortemente a religião formal. De todos os personagens que circulam pelos contos inseridos no livro, nenhum é mais abjeto e corrupto que o padre Hudson, que se mostra uma figura respeitável em público, enquanto, por trás dos panos, dedica-se a arruinar opositores e a conquistar todas as mulheres atraentes que lhe cruzam o caminho. É talvez como uma recusa aos recursos tradicionais dos romances do século XVIII, como Pamela: ou, a virtude recompensada, nos quais o bom comportamento tende a dar bons frutos, que esse religioso realiza diversas tramoias sem que nenhum tipo de justiça caia sobre ele.

Essa alternância da narrativa, que adquire uma tendência ora fabulosa, ora realista, é característica da obra como um todo. Embora se entregue a diversas convenções dos romances da época, como a preferência por contos de amor, ou a importância do acaso (ou do destino) para o enredo, Diderot se questiona frequentemente, na figura do narrador, quanto à razoabilidade dessas inclinações ou artifícios literários. Por vezes ele acusa o leitor de manter expectativas pré-concebidas e se recusa a continuar a descrição de uma cena, saltando para um ponto mais a frente. Em outros momentos, simplesmente oferece diferentes soluções narrativas, deixando para o leitor a escolha da que mais lhe aprouver.

É bem evidente que não faço um romance, uma vez que negligencio o que um romancista não deixaria de empregar. Aquele que toma o que escrevo pela verdade estará talvez menos errado que aquele que o toma por uma fábula.

 

Para o leitor contemporâneo, os questionamentos metaficcionais de Jacques, o fatalista, e seu amo podem parecer familiares, mas isso não esvazia os seus efeitos. Pelo contrário, surpreende a originalidade precoce da obra de Diderot (ainda que apoiada em Laurence Sterne). Acrescente-se a isso um rol de personagens marcantes e obtemos um esboço de explicação para a sua longevidade entre os grandes clássicos.

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Um aparte para questões de gênero. Obviamente não cabe cobrar de Diderot, morto há mais de duzentos anos, uma perspectiva moderna, mas é preciso deixar anotado que algumas situações retratadas são revoltantes para a consciência que temos hoje da condição da mulher. Em especial, há uma cena a dois terços da história em que Jacques reconta o modo como perdeu a virgindade com a namorada do melhor amigo, utilizando-se para isso de coerção moral.

Não cabe reproduzir a cena, mas vale citar o comentário recente de Jada Yuan em um artigo da Vulture sobre a cultura do estupro nas séries de tv americanas. A diretiva serve também para a literatura.

Estupro não é sexy, nem um ponto na trama, ou um segredo chocante a ser preparado para uma revelação dramática. A razão – a única razão – para filmar uma cena de estupro é fazer com que a audiência entre naquela sensação de desconforto, para nos forçar a ser testemunhas da tortura que somos capazes de infligir uns aos outros e sairmos com uma compreensão mais profunda daqueles que ferimos e da profundidade da sua dor.