Se existem duas coisas que me fazem sair do caminho, mudar planos, me enfiar em lugares esquisitos, essas coisas são cemitérios e ruínas. Que são, parando para pensar, dois lados da mesma coisa.

Eu ainda me lembro da quebrada assustadora onde acabei parando para ver o cemitério de Budapeste; ou da chuva torrencial e da lama nas minhas calças, enquanto eu chafurdava pelo Père Lachaise atrás de Jim Morrison. Quando me perguntam se valeu a pena ter andado quatro dias até Machu Picchu, meu único motivo para responder sim são as ruínas que vi no caminho (de resto, e essa é a única “dica de viagem” que você verá nessa coluna: esqueça, pegue logo o trem). E nada, de todas as muitas coisas que eu já vi nesse mundo, me impressionou como Pompeia.

Pompeia é o tempo interrompido. A vida cotidiana congelada enquanto se dava como sempre. Ao mesmo tempo uma ruína e um cemitério, talvez seja meu lugar preferido da Terra. Sei que parece mórbido dizer isso, sei também que só posso dizer isso porque uma tragédia de dois mil anos atrás se torna mítica, as vidas já estariam há tantos e tantos séculos perdidas que já não sobra lamento.

Mas é em parte por isso que gosto tanto de ruínas quanto de cemitérios, porque eles resistem ao mito. Uma vez uma amiga me disse que não via por que seria necessário, ou desejável, visitar túmulos de pessoas famosas e minha resposta foi que muitas vezes artistas são desconhecidos que sentimos como próximos. O que a literatura da Sylvia Plath fez por mim é uma linha tão íntima, tão cheia de significados, que eu visitaria o túmulo dela como de um parente.

Em julho de 2014, no fim do que tinham sido os doze meses mais difíceis da minha vida e depois de ter entregado uma dissertação de mestrado que cheguei muitas vezes muito perto de abandonar, eu me sentei na frente da lápide de Ingmar Bergman, meu tema e minha obsessão pelos três anos anteriores. Para chegar ali, eu precisei de um avião até Estocolmo, uma balsa até Götland e um ônibus até Fårö. Eu me perdi, eu vim e voltei, eu andei sob o sol tórrido, eu chorei várias vezes naquela ilha porque achei que nunca chegaria em lugar nenhum e nunca sairia dali. Quando finalmente me deram minha casinha, com vista para aquela praia que eu já tinha visto pelos olhos dele tantas vezes, eu chorei de alívio e emoção e fim. Eu e você, Bergman, terminávamos ali.

Mas para deixar esse final claro, no dia seguinte eu me sentei em frente ao túmulo dele e falei. Falei, falei. Sobre o que ele tinha me ensinado, sobre as perguntas que eu tinha e ele tinha e as respostas que ele tinha, mas eu não e as que nenhum de nós dois tinha. Falei e pensei sobre o peso de ser um homem como Bergman, a solidão do gênio, como se sentiria aquele realmente capaz de acessar a alma humana. Mas acontece que ali, embaixo da terra, no terreno de uma pequenina igreja em uma minúscula ilha sueca, Bergman era só um homem. A essa altura provavelmente só uns ossos. Só uma corporeidade, física, concreta. Ali, enterrado ali, Ingmar Bergman não era seus filmes, seus textos ou “o homem que fazia perguntas difíceis”, mas um homem, um cadáver, um esqueleto. Em sua materialidade absolutamente comum.

Continuo tendo a mesma sensação quando vejo as lápides de pessoas como Balzac, Jim Morisson, Fernando Pessoa. O túmulo de Pessoa talvez seja meu favorito (e sim, sei o quanto é estranho ser o tipo de pessoa que tem um túmulo favorito): um quadrado vertical, em cada um dos lados um verso de um de seus heterônimos. Fica em pé o homem que foi só desassossego e residem ali multitudes.

Tenho um pouco a mesma relação com ruínas: a História pode se tornar algo mítico, uma narrativa que supostamente explica como chegamos até aqui, mas com a qual já não temos uma conexão real. A História deixa de ser nossa história. Mas em cidades abandonadas, como Pompeia ou Machu Picchu, ela volta a ser a história das pessoas comuns, dos homens pequenos que tiravam água do poço, cuidavam de crianças, preparavam pão e acendiam fornos. Em lugares assim, o mais preservado normalmente são casas comuns, não templos ou outras estruturas enormes. Ao passear por cidades perdidas, você se pega entrando em quadrado após quadrado exatamente igual, perfeitamente comum.

Em Pompeia alguns lugares especiais permanecem, mas há também mosaicos perfeitos que ficaram em casas aleatórias. Não era o mosaico mais perfeito, mais bonito, mais significativo dos movimentos artísticos e gosto estético da época. Mas permaneceu. Porque o acaso é uma força maior que qualquer narrativa.

Gosto de pensar nisso quando visito esses lugares também, sobre o como o acaso molda a História. A contamos a partir do que restou e o que restou é completamente aleatório.

Sem ter medo de ser o mais clichê possível aqui, o lugar mais difícil que já estive foi Auschwitz. E antes que você me responda com um “nossa, mas que surpresa!” eu quero seguir com o raciocínio: em Auschwitz, na materialidade do lugar e das ruínas (porque não é mais que uma ruína), na dimensão infinita daquilo, a História se tornou minha história. Foi parada ali que a dimensão da coisa me bateu, que a minha própria existência, pequena como é, tornou-se um ato de resistência só porque eu estava em pé ali, em Auschwitz.

Outros lugares são menos trágicos, é claro. Mas ainda assim, esses ambientes vazios nos conectam com o que é sim nossa história, a história de todo mundo. Salas de reuniões de cavaleiros templários, os andes cobertos de nuvens, gatos que dormem sob o sol de Éfesos. A vida segue nesses lugares e continua ligada ao que esteve antes ali.

Semana passada, enquanto eu observava cuidadosamente o túmulo de Fernando Pessoa me perguntei por que gastava tanto tempo, sendo que já tinha estado ali. Por que, pela segunda vez, eu rodeava aquele pedaço de mármore e ficava parada por um tempo absurdamente longo, considerando que não há nada para ver.

A resposta veio aos poucos. Eu gosto dos lugares onde as coisas já não são mais, porque é ali que elas mostram com mais força que já foram.