A fé religiosa pode ser um combustível catártico ímpar, forçando os limites filosóficos e dramáticos da escrita e da imaginação, participando, assim, como uma força verdadeiramente construtiva da literatura. Apesar dos propósitos proselitistas que costumam assolar a fé nas letras, empobrecendo-as, existem escritores e obras nos quais a crença oferece o escopo a partir do qual se constrói o enredo, os argumentos e os personagens. O francês François Mauriac é um dos escritores em que se pode observar essa situação, e as páginas de O deserto do amor, romance de 1925, são prova suficiente para atestá-lo.

O romance se inicia num bar na rua Duphot, num clima decadente, onde se encontra Raymond Courrèges, bebendo e mantendo uma pose juvenil que o permita dissimular sua meia-idade. Quando seu olhar se dirige à porta, ele vê entrar uma mulher muito conhecida, Maria Cross, com quem se relacionou durante a juventude. É essa entrada que dispara o gatilho de memórias cujo enredo é a real trama do livro: um triângulo amoroso composto de inusitados vértices, e vivido em suas desconcertantes e ferinas consequências.

O que Raymond recorda diante da entrada do casal é a adolescência em que, por conta do liceu, alternava a região de Bordeaux, onde morava, e a capital parisiense, onde estudava. O percurso era feito de bonde, e nestas ocasiões, ao lado de trabalhadores, o púbere Raymond sentava-se defronte a Maria, que vinha do cemitério em direção ao lar. Diante dos olhos dele, havia uma fêmea promissora das delícias do amor; diante dos dela, um fantasma do filho cuja morte ainda lhe mantinha vestida de preto. De início, nenhum dos dois tinha noção de que o que os unia não eram só aquelas viagens fortuitas, mas Paul Courrèges, pai dele e amante dela.

Como grande parte dos romances de Mauriac, a ação é gestada no seio de um típico lar burguês de traços aristocratizantes (bem à francesa), com homens proeminentes e não raro hipócritas, e mulheres submissivas e sofredoras. Mauriac constrói seu edifício literário de maneira ponderada e serena, com uma sensibilidade invejável, fornecendo às cenas e aos diálogos a cadência que os fazem mais expressivos e dotados de drama. Os arroubos são poucos e as sutilezas muitas, sendo que a narrativa ressalta com precisão os detalhes que interessam, deixando-os se impôr com todas as suas consequências.

A posição da mãe e esposa, Lucie, no tenso universo doméstico dos Courrèges é um belo exemplo disso. Ela é hostilizada pelo marido, deixada de lado pelos filhos e tratada condescendentemente pela sogra (que mora com a família), suportando o peso de não poder entrar em colapso para não comprometer a reputação e a respeitabilidade do clã. Como esposa exemplar e pia, range espiritualmente sob o peso da imagem que tem de sustentar, e todas as situações em que participa ressaltam sua inadaptação ao mundo do marido e dos filhos, por conta do papel de mãe cuja vida se restringe ao lar e à realidade doméstica.

Maria Cross é o contraponto dela. Na condição de viúva e mãe (antes que seu filho falecesse), buscou alguém cujo apoio lhe permitisse se sustentar, tendo encontrado ali Paul Courrèges, o respeitável médico bordelês. O sustento material provido por Paul era acompanhado pelo atendimento médico ao filho dela, mas vinha sob certas condições, dentre as quais a de tê-la como amante. O que demonstra o oco de sua reputação, e a deslealdade à pobre e cordata Lucie.

Num duro golpe, a morte se abate sobre o filho de Maria. A fatalidade desencadeia uma espiral de culpa sobre ela, que se desentende com Paul Courrèges na medida em que se recusa a despir o luto para pôr-se em trajes de núpcias. Alguns dias depois, voltando da vigília do túmulo de seu filho, é que ela começa a se relacionar com Raymond, sem saber que se tratava do herdeiro dos Courrèges. O amor de Maria por Raymond é de ordem maternal, desencontrado das intenções dele para com ela, já que este esperava tomá-la como sua guia no mundo do sexo, para cuja descoberta sua puberdade o impelia.

Estando o luto impedindo Maria de entregar-se aos desígnios lúbricos esperados tanto por Paul quanto por Raymond, ela sente-se ingrata àquele e culpada em relação a este, pois descobre suas origens familiares. Presa do destempero imperioso de pai e filho, tomados pela libido, ela percebe ter-se tornado o vértice de um triângulo amoroso abjeto, o que a faz tomar medidas desesperadas em relação ao pecado em que se vira lançada. Maria tenta suicidar-se.

No delírio do episódio, ela parece ter uma epifania que mostra a tragédia de sua situação, pois a gratidão que nutria por Paul (seu “protetor”) e o carinho por Raymond (avatar de seu filho perdido) parecem ter-se corrompido numa triste mundanidade profana das ambições e urgências pecaminosas deles:

– E agora lhe pergunto, doutor, que outra solução pode haver, além do sono? Tudo me parece tão claro agora! Compreendo o que não compreendia; os seres que nós acreditamos amar…esses amores que acabam tão miseravelmente…agora conheço a verdade… (…) Que loucura esperar atingir esse objeto!…Pense que não há nenhum outro caminho entre nós e esses seres do que o tocar, o abraçar…a volúpia, afinal! E contudo nós sabemos muito bem onde leva esse caminho, e por que ele foi traçado: para continuar a espécie, como o senhor diz, doutor, e somente para isso. Sim, compreenda, nós tomamos o único caminho possível, mas caminho que não foi traçado para aquilo que nós procuramos (…). O senhor sabe, doutor, quando se vê o relâmpago e se escuta o raio no mesmo segundo? Pois bem, em mim o prazer e o nojo se confundem, como o relâmpago e o raio: me atingem juntos. Não há intervalo entre o prazer e o nojo. (pp. 169-170)

A solução encontrada por Maria (amenizada pelo termo “sono” em vez de “morte”) aparece como um pico trágico poderoso aos olhos de Mauriac, católico convicto e sabedor da natureza pecaminosa do suicídio. A decisão dela resulta da constatação do “deserto do amor” que se forma e se adensa quando a vida é contida nela mesma, sem que haja algo que a transcenda; no caso de Mauriac, a crença numa centelha divina que nos habita e que nos permite ser mais do que seres carnais e materiais. O amor é um deserto, se torna vil e meramente carnal, pecaminoso, quando restrito no curto-circuito dos interesses mundanos, quando não se abre a algo mais do que sua imediaticidade material e sensível.

A gratidão de Maria a Paul e o carinho dela a Raymond poderiam tornar-se amor, mas não rompem sua materialidade lúbrica e pecaminosa mais imediata, tornando-se não fecundos (“prazer”), mas desérticos (“nojo”). Maria Cross é trágica porque encarna um dos conflitos fundamentais da literatura de Mauriac: até que ponto a vida com vistas à divindade inviabiliza a vida (degenerando em fanatismo, dogmatismo e impiedade) e até que ponto a vida mundana interdita a divina (tornando-se cinismo, hedonismo ou, mesmo, desespero). Como abraçar a joie de vivre sem deixar de lado as responsabilidades confessionais, como não adorá-las a ponto de tornar a vida um “pântano” odioso de pecado.

Mas há ainda algo mais. Ao escritor francês, e inscrito nos caracteres trágicos da trajetória de Maria Cross, o utilitarismo autocentrado e o hedonismo irresponsável dos Courrèges, patriarca e varão, redundam na mesquinharia desértica que é uma vida que não permite a transcendência. Isto torna os Courrèges pecadores mais devassos do que Maria: eles praticam conscientes o pecado e o justificam cinicamente, enquanto ela é enredada pelo pecado ao tentar alcançar o amor. Não é à toa que é sobre Maria que recai a solidariedade de Mauriac (Maria Madalena reloaded?), o tropeço no pecado no caminho em direção à virtude é o que a humaniza e, ao mesmo tempo, diviniza aos olhos do católico escritor francês.

O que Lucie Courrèges suporta calada, Maria Cross transforma em ação desesperada. Mas a fonte dessas atitudes não é muito diferente: advém de uma condescendência masculina entrelaçada ao utilitarismo do modo de vida burguês. E é isso, dentre outras coisas, que demonstra quão fecunda a fé religiosa se torna para a literatura dele: o rompimento com a moral pragmática burguesa, com a qual o escritor teve de se confrontar no seu caminho às letras, encontrando na religião uma abertura à transcendência que, apesar de seu ascetismo, oferece uma curiosa crítica à mesquinharia. Isto é, a religião oferece o escopo dentro do qual Mauriac desenha um humanismo piedoso dos que padecem com as implicações de uma existência rasteira, e oferece a ele o caminho não de uma vida de mortificação e penitência, mas de realização espiritual e de busca de uma plenitude existencial.

Curiosamente, Mauriac sai das demarcações existenciais estritas impostas pela moralidade pobre e castradora, encarnada no lar dos Courrèges, mas vai de encontro aos liames de outras demarcações, de ordem confessional. A religião se oferece a ele como uma ética que engrandece e que devolve a plenitude de sentido aos atos humanos, contrariamente à moralidade dominante, que os apequena e torna comezinhos seus interesses. A Mauriac, a religião é, finalmente, a linguagem que permite dar inteligibilidade e forma estética aos dramas e tragédias humanas, seja na silenciosa paciência (de Jó) de Lucie, seja no mergulho transido de Maria (Madalena) no coração dos dilemas de uma fé que se queira consequente a deus e aos homens, à alma e à carne ao mesmo tempo. Afinal de contas, é por meio do pecado de desejarem afoitamente a mesma mulher que Paul e Raymond voltam a se falar, e é a partir dele que Paul resolve redimir-se em relação a sua pobre mulher.

A superação do materialismo burguês e a busca por uma genuína solidariedade humana passam pela fé católica, a qual, aos olhos de Mauriac, permite superar o “deserto do amor” das paixões mundanas sem, com isso, deixar de tomá-las como vida real. François Mauriac é, ao fim e ao cabo, um humanista coerente ainda que muito idiossincrático, a quem a busca de uma fruição existencial não obstruía, mas se coadunava com os mistérios do crer – questão essa que acabou por tornar-se um dos mais poderosos núcleos de elaboração estética de sua obra.