Chico Buarque - foto por Fausto Rego

Ana Maria Clark, professora de literatura da Universidade Federal de Minas Gerais, publicou, recentemente, Chico Buarque: recortes e passagens (Editora UFMG, 2016), simpático estudo dedicado à obra do artista mais cantado em verso e prosa do país. Em meio a tamanha fortuna crítica, o dedicado livro de Ana Maria se destaca pela originalidade. No geral, os trabalhos sobre Chico, como acontece com Machado de Assis ou qualquer outro artista monumental, são revestidos por tediosas camadas de repetição, como se em algum momento da nossa história um seminário secreto tivesse delimitado os assuntos que poderiam ser abordados nos estudos acadêmicos.

Quando Ana Maria aborda tais assuntos recorrentes, é para levá-los por caminhos distintos, ampliando possibilidades de interpretação. Além disso, a autora faz uma acertada sugestão de análise dos últimos romances de Chico em relação à obra do seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda. São quatro as seções do livro, sobre as quais comento brevemente:

Em “Questões de extimidade” se analisa a influência francesa na obra de Chico e o ghost writer que narra Budapeste, romance de 2006. Partindo de quatro pares de aparente oposição, o nacional/estrangeiro, o popular/erudito, o privado/público e o masculino/feminino – reduzidos ao denominador comum dentro/fora –, Ana Maria Clark aproxima a música e a literatura de Chico ao conceito lacaniano de extimidade, que substituiria uma intimidade impossível, falsificada. Uma exterioridade íntima – mais ou menos como aquele verso de Rimbaud que diz que o “eu é um outro”.

“Chico Buarque, leitor dos clássicos”, o segundo capítulo, evidencia diálogos do compositor com Charles Baudelaire e Dante Alighieri. Como já mencionei, embora sejam comparações naturais, são feitas de modo a encontrar pontos que não tenham sido ainda devidamente analisados no cancioneiro de Chico – já li, por exemplo, muitos ensaios comparando a “Beatriz”, de Chico e Edu Lobo, que “pode um dia despencar do céu”, com a musa de Dante, que ascende ao paraíso, mas é a primeira vez que vejo versos de Baudelaire serem pinçados de “Ode aos ratos”, outra parceria com Edu. Um pequeno achado.

O terceiro e mais interessante capítulo, “Uma poética do comum”, leva em conta a presença de elementos da vida cotidiana, como o futebol, a culinária e o homem do dia a dia ao longo de toda a obra do artista. Também é a primeira vez que vejo uma análise teórica levar em consideração as ótimas crônicas esportivas que Chico escreveu durante a Copa de 1998. O estudo da presença desses elementos por décadas, de 1960 até agora, revela uma capacidade assombrosa da canção de repassar a grande história “pelas pequenas experiências, essas por sua vez reveladoras da vida coletiva de um modo inesperado”, para citar um ensaio de Guilherme e José Miguel Wisnik. A conclusão é a feliz superação daquele debate que permeia a história da música popular brasileira – isso, aquele mesmo do compositor político versus o músico alienado.

Por fim, “’Meu pai pra mim era um som de máquina de escrever’”, o quarto capítulo, parte de uma interessante sugestão de como Leite derramado e O irmão alemão, mais recentes romances de Chico Buarque, se constroem a partir de restos da obra de Sérgio Buarque de Holanda. E é sobretudo em torno dessa interlocução familiar que gira a entrevista inédita que Ana Maria Clark fez com Chico em 2015, agora publicada como apêndice deste livro.

Sem poder desenvolver muito a resenha, considero Chico Buarque: recortes e passagens um belo respiro no que tem se produzido sobre o compositor. Funciona muito bem como porta de entrada para quem quer estudá-lo. Até porque, ressalta-se, Ana Maria Clark passa longe da maior armadilha na qual caem de punhado os estudos buarqueanos: a de querer se provar, a todo custo, o fã número um de Chico Buarque.