NOTA: Esse texto combina elementos de ficção e realidade, e outros ainda que não são nem uma coisa nem outra, mas estão na ordem do absurdo, da alucinação ou do surrealismo, como esses nossos tempos. Porque às vezes a realidade é ruidosa demais, dissonante demais, e temos que buscar uma nova linguagem com que dialogar.

 

Tacaram fogo no museu! Tacaram fogo no museu! – brada pelas ruas um rapaz despertando a noite. Era um jovem que vinha correndo, como um alazão em disparada com os pés queimando na brasa. Com os olhos carregados de adrenalina e o rosto vermelho que se confundia com a camiseta de mesmo tom, era como um fósforo a riscar as ruas, fazendo da própria garganta as trombetas do Apocalipse, e toda a cidade tremia com seu grito.

O céu noturno da Quinta da Boa Vista assumia um tom brasil pulsante, fazendo a noite piscar. O prédio gordo, que se banhava nos sóis das manhãs esperdigado pelos campos de São Cristóvão, agora queimava feito o bolo de uma festa maldita, enquanto figuras macabras se projetavam das sombras no céu, batendo palmas com as mãos ainda cheirando a gasolina e comemorando a morte do passado e a ameaça ao futuro. Fragmentos de tecidos, papeis, madeiras e outros materiais que se desintegravam no chão pelo calor infernal eram lançados ao ar e pelas horas seguintes continuariam a se espalhar pela cidade. O corpo incinerado de um palácio cujas cinzas flutuarão para sempre pelas terras de São Sebastião de que foi um dos símbolos fundadores; quiçá também por todo o território a que chamam Esta Terra e sobre a qual tinha tanto a dizer; quem sabe ainda além mar, levando de volta pela força de deuses da diáspora que não são fracos, só estão cansados de serem agredidos, as poeiras das peças sagradas usurpadas durante o saque colonial e nunca devolvidas por uma nação que ainda não havia se descolonizado.

Ali era uma museu, e também uma universidade, e um dia foi Casa Real, e antes disso a residência de um comerciante e senhor de escravos, símbolo do sucesso de uma empreitada de dominação e violência que forjou nossa ideia de civilização e que, por isso mesmo, nos ajudava tanto a entender certos porquês de sermos assim, do jeito que somos, errados assim. “Sol, a culpa deve ser do sol.” – tem cantado o Chico sobre nossa inconstância selvagem.  

Construção iniciada em 1803 que, de tão imponente, atraiu a cobiça da corte de Dom João, que fugia de Napoleão e foi se valer das terras mansas da colônia de exploração como refúgio. Terreno vocacionado para concentrar as idiossincrasias de nossa história, agora soma aos teus feitos seu próprio assassínio. Quantas mãos escravizadas te forjaram? Quanto sangue indígena nutriu seu solo? Quantas lágrimas encheram esse teu lago que hoje os bombeiros tentam drenar, vã e desesperadamente, ao perceberem que vieram atender a um chamado de incêndio com os reservatórios dos caminhões vazios? A água que faltou àquelas mangueiras, crucial na contenção de danos que poderia ter salvado algumas seções do prédio, é feita da mesma matéria usurpada de outros serviços públicos, é a falta de vaga na educação, da creche à universidade, é a falta de leito e remédio nos hospitais, de saneamento básico nas cidades e comunidades, enfim, essa tal e vil situação já bem sabida, composta de uma mesma matéria líquida que nos escapa pelos dedos, ainda que nos pertença, drenada por essas figuras vampirescas, pitorescas, de fato grotescas que tomaram a nação como por uma possessão.

Quando se queima um espaço comum dessa importância, queima-se algo da identidade coletiva e se destrói também a potência que o lugar oferecia. Espaço impregnado pelas contradições de sua sociedade, depósito de relíquias criminosas, nos últimos anos passava, dentro dos setores institucionais de seus corredores neoclássicos por um processo verdadeiramente revolucionário promovido pelas cotas raciais e a articulação política de estudantes negros, estudantes mulheres encaminhando demandas feministas à instituição, além de locus de constante reflexão sobre as questões de indígenas, quilombolas, sem teto e sem terras. Vivia, assim, mesmo que ainda bastante elitizado e pouco frequentado pelo público geral, um processo de tomada de espaço público e político justamente por aqueles que haviam sido historicamente excluídos de frequentar seus amplos salões, suas salas de aula ou seus bucólicos jardins internos.

Processos autoritários contém sempre ataques visando o controle ou a destruição de instituições culturais e de ensino e pesquisa, pois elas geralmente constituem espaços de articulação de ideias alternativas, produzidas justamente pelo esforço reflexivo de quem se dispõem a descobrir coisas novas. Os que lutam contra elas são sempre homens cheios de convicções, cheios de verdades ou crenças tão arraigadas que não permitem qualquer abertura ao novo, ao outro, às diferenças de opinião ou ao exercício de deslocamento de perspectiva.

Não apenas uma lembrança fugidia de uma Era de Ouro Colonial, que sobreviverá a partir do bom trabalho de historiadores que haviam compilado parte do acervo agora perdido, mas sobretudo era hoje em dia (essa massa de tempo que parece já ter ficado para trás e virado outra coisa) que o Museu Nacional produzia algumas das teses mais originais e arrojadas sobre nosso país. A antropologia, a botânica, a biologia, a museologia e outras áreas do conhecimento ajudavam, nesta casa, a compor a concha de retalhos que explica o que fomos, somos e seremos, ressignificando aquele espaço. Seu incêndio reforça sua função mística de dobra no tempo, moldando com esse crime certo aspecto do futuro. Queimá-la, seja tacando-lhe fogo com o mais clássico fósforo, replicando em ampla escala a fogueira de livros da distopia literária de Ray Bradburg com a destruição quase total de um acervo de 20 milhões de itens, ou de maneira mais sutil, kafkiana pois burocrática, através de subsequentes cortes orçamentários e contingenciamentos de verbas, é a mesma coisa e produz o mesmo resultado. Perdê-la é como perder aquela caixa em que guardamos recordações, nossos objetos-memória. Me fez lembrar uma cena do filme Paterson, de Jim Jarmush, em que o poeta e motorista de ônibus protagonista da história percebe ao chegar em casa que seu cachorro destruiu em mil pedaços o caderninho em que escrevia seus poemas. A expressão de consternação do homem retrata a realização do irreparável, do irreconciliável, do impagável. No nosso caso, um cão dos infernos devorara nossa cultura material, e ele era nosso próprio Estado.

O escritor moçambicano Mia Conto disse, em publicação de consternação sobre a morte do museu, que “o Brasil parece um país em guerra consigo mesmo”. Metafísica da predação, em que se caça e é caçado ad infinitum. Sob os olhos inertes dos deuses gregos enfileirados na fachada do Museu, o ritual foi completo, liderado pelas figuras satânicas que têm nos feito reféns, evocando a próxima geração de demiurgos, ainda mais toscos, composta pelos tipos que se recusam a assumir nossos pecados coletivos, que tampam os ouvidos e fecham os olhos à escravidão imposta aos negros, aos genocídios dos indígenas, à perseguição, tortura e morte dos opositores ao regime militar, enfim, gente para quem só existe o pecado (dos outros). Emanações do que há de pior na nossa ignorância, energia pesada mesmo, essa é a vitória de um intenso processo de negação de nossa história.

Mas eles se esquecem das resistência, das subversões, das revoluções…

Porque a gente não quer que o mundo acabe, mas ele insiste em continuar ameaçando acabar. Mas não se esqueçam: o Bendegó sobreviveu. O meteorito que beijou essa terra em seu pedacinho mais doce de chão, vindo sei lá de qual rincão do infinito céu para cair no sertão da brasileira Bahia e depois ser transposto à capital da época para ser exposto desde então. Foi encontrado pelo menino Berdinadino da Motta Botelho, em 1784, que dizem ter exclamado “Ôxi!” ao ver o pedrão de cinco toneladas.

As pedras resistem. Sejamos pedras então. Resistir é uma forma de existir, e Gal nos ensinou que “é preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer a morte” – não temos tempo a nenhum temer. O mundo é muito mais do que homens de mãos pequenas. Ontem vi, na seção de uma mostra de cinema negro, no fabuloso Odeon, na praça da Cinelândia, uma menina com a camiseta: “Quem não luta, está morto”. Disseram, no ato do dia seguinte ao incêndio, na mesma praça da Cinelândia, que a primeira mulher do Brasil havia sido queimada nesse incêndio. Referiam-se a Luzia, o fóssil humano mais antigo encontrado nas Américas, nas terras do Pará. 13 mil anos depois, datação aproximada de Luzia, mulheres negras ainda são encontradas mortas, assassinadas, nesse sítio “de bruteza antiga e natural” que é o nosso, como descrito pelo padre Antonio Vieira no século XVII. “Sou eu queimando na fogueira do pecado” – grita Ava Rocha em 2018, Eva de um novo Gênesis, sem pecado, Deusa na Terra do Sol, no clipe de sua música Joana Dark. No céu da tarde de ontem nasceu um arco-íris. E o diabo é que vá par’os diabos!