Recentemente, como anunciado pelo portal PublishNews, foi decidido que o Prêmio Jabuti, que desde 1959 contempla várias publicações de editoras nacionais, terá a partir de agora sua categoria Romance dividida em duas: “Romance de entretenimento” e “Romance literário”. A princípio louvável, a intenção de incluir a chamada “literatura mais comercial” na premiação parece, no entanto, ter levado a uma solução bastante contestável para a questão. Por esse motivo, duas pessoas da nossa equipe e uma colaboradora decidiram se manifestar sobre o problema.


Taize Odelli

Diferenciar “romance literário” de “romance de entretenimento” é uma forma de continuar com essa separação esdrúxula entre o que é mais comercial e o que é considerado “arte”. É, implicitamente, dizer que um romance mais popular não tem a forma e estética que se considera “literária”, quando na verdade tem sim, e muito. Mas além da estética, tem também diversão. E, ao mesmo tempo, não dá para dizer que o que é “literário” não pode divertir, não pode entreter, quando o papel principal da literatura é entreter enquanto te faz refletir. As coisas não precisam estar separadas, não precisam ser ou preto ou branco. Literatura é esse espaço cinzento em que você pode ler sobre as amarguras da experiência humana num dia e partir para uma ficção intergaláctica no outro. E ambos são gêneros válidos literariamente falando.

Outra questão é que isso parece ser uma forma do Prêmio Jabuti de manter o elitismo de quem faz o prêmio. Nenhum romance mais popular escrito por autores nacionais estava proibido de se inscrever no prêmio antes, mas sabe qual é o problema? O problema é que quem julga os livros inscritos não coloca um livro “divertido” nem na lista de considerações do que pode ser bom, porque parte do princípio de que só vale ser premiado aquilo que já faz parte de seu catálogo usual de leituras – que geralmente são livros escritos por homens brancos de meia-idade que vivem em centros urbanos.

Se o Jabuti realmente quer contemplar mais os romances “de entretenimento”, que renove sua base de jurados, seu curador, as pessoas que fazem o prêmio acontecer. Enquanto essa elite intelectualizada continuar fazendo o prêmio, essa separação entre o que é “alto e baixo”, “comercial e artístico” vai continuar.


Daniel Falkemback

Na recente decisão no mínimo controversa do curador do Prêmio Jabuti, Pedro Almeida, fica patente uma visão por demais elitista de literatura, sem qualquer fundamentação teórica ou crítica. Segundo o site da premiação, o “romance de entretenimento” seria:

Narrativa ficcional em prosa, geralmente longa, cujo enredo se desenvolva relacionando personagens numa sequência temporal. Aqui devem ser inscritos os romances de gênero, de entretenimento, como: policial, ficção científica, terror, romance sentimental/de amor, humor, suspense, aventura, fantasia, entre outros. O júri desta categoria irá avaliar as qualidades do enredo, privilegiando o conteúdo, a trama.

Vê-se que o que fica subentendido é que o “romance de entretenimento”, independentemente do que de fato ele seja, tem uma forma desprezível, o que com certeza não pode ser algo atestado em todas as publicações que se encaixariam na categoria. No aspecto formal, o que se espera de inscritas e inscritos é apenas um “enredo” com “personagens” e uma “sequência temporal”, limitando-se, assim, as possibilidades de organização do texto. Ao mesmo tempo, a listagem dos gêneros parece incorporar vários livros que também poderiam estar no “romance literário”. O maior problema, certamente, parece ser a ideia implícita de que o “romance de entretenimento” não é literatura de verdade, uma “arte literária”, afinal não está na categoria de “romance literário”, que é assim definida:

Narrativa ficcional em prosa, geralmente longa, cujo enredo se desenvolva relacionando personagens numa sequência temporal. Podem narrar sobre todo tema e sob qualquer enfoque. O júri desta categoria irá avaliar as qualidades do texto, privilegiando a forma, a arte literária.

Aqui, a forma é privilegiada, pressupondo-se, então, que o conteúdo em si parece ser um tema menos importante, que pode ser qualquer um, “sob qualquer enfoque”. É dada, portanto, uma liberdade ao dito “romance literário” que não é oferecida ao “romance de entretenimento”. Definir-se um texto por um “enredo” com “personagens” numa “sequência temporal” também parece tirar toda a possibilidade de experimentação possível do romance. É o que também pode se concluir de uma leitura dos critérios de a serem apreciados pelo júri, descritos no regulamento do prêmio. Desse modo, como avaliar uma categoria voltada para a forma se essa forma parece estar restrita a uma concepção de romance que, salvo engano, é herdeira da tradição burguesa e europeia do século XIX?

O que se percebe é que a separação das obras sob esse novo esquema está baseada na já superficial diferença entre forma e conteúdo, que toda a teoria literária já estudou a sério e demonstrou ser muito mais complexa do que parece ser. O prêmio, na verdade, mostra estar mais concentrado no conteúdo, melhor definido (e restrito) na categoria de “romance de entretenimento” e, ao mesmo tempo, aberto na de “romance literário”, ainda que, em termos práticos, talvez dê para se entender que essa segunda categoria não possa dar muito espaço para matérias semelhantes à da primeira.

No fundo, o fundamento da ideia de o prêmio estar “mais atualizado com o interesse do leitor e as tendências do mercado editorial”, anunciada na página inicial de seu site, é a rançosa concepção que distingue o erudito do popular. Ela não abre espaço para interações reais e construtivas entre esses dois elementos, elaboradas pela própria literatura (por infinitos exemplos) e pela crítica (variada também, mas destacaria Susan Sontag, lá nos anos 60). Basear-se nessa visão é ignorar toda uma reflexão de décadas, ou melhor, de séculos sobre a escrita. O que a curadoria do Prêmio Jabuti precisa repensar, inclusive olhando sua própria história de premiadas e premiados, é que o romance pode ser muito mais diverso, assim como o resto da literatura, e vai muito além dessas duas caixinhas.


Emanuela Siqueira (*)

O elitismo, intelectual e de mercado editorial, talvez seja uma das principais questões disfarçadas na crítica literária hegemônica e outros espaços que chancelam o que é e o que não é literatura. As premiações são legitimadas por esse elitismo, já que muitas delas dependem do mercado editorial que paga a inscrição de seus/suas autores/as, e muitas vezes o preço é bem salgado. É nessa esteira que o Prêmio Jabuti, um dos principais do país, anunciou que terá duas categorias para romance: uma de “entretenimento” e outra “literária”. Parece uma questão de redundância, porque se é romance, só pode ser literário, e ler um romance para se entreter parece algo bem corriqueiro, mas não o é para quem quer de alguma forma continuar ditando o cânone e o mercado editorial.

Como pesquisadora de autoria de mulheres, reconheço historicamente a marca elitista na divisão entre o que é para entreter e o que é supostamente uma escrita “séria”. Essa sempre foi uma premissa para “homens das letras” desqualificarem romances (e outros gêneros literários) escritos fora da norma masculina, relegando essas obras à categoria de um enorme “outro”. Mas, afinal, quais seriam as características que diferenciam um romance literário de um de entretenimento? Na historiografia literária, temos muitos casos de livros bem vendidos para público amplo e que são consideradas grandes obras. O que dizer ainda de romances esquecidos pela crítica de determinada época e, depois, recebidos com entusiasmo? O próprio Jabuti já premiou romances que tiveram ou têm, no mercado livreiro, um espaço notável de vendas. Esses livros não entretêm? Ou não são literários, mesmo com a chancela do prêmio?

Na verdade, a pergunta não deve ser sobre do que se trata essas nomeações categóricas, e sim quem diz o que é cada categoria. Toda a estrutura de poder da premiação é que deve ser questionada, quem serão os/as jurados/as que decidirão quais romances são puro entretenimento e os que são sisudos e literários. Quais diferenças há entre eles? Minha maior curiosidade é saber de que lugares e premissas estéticas partem essas pessoas que julgarão os títulos inscritos. É preciso, sim, personificar essas estruturas de poder para justamente entender de onde esses indivíduos falam e quais são seus interesses. Se forem dos mesmos lugares de sempre, embranquecidos/canônicos/masculinos, continuará sendo uma premiação irrelevante que causará uma pequena comoção por pouco tempo e, depois, sem a colaboração de quem realmente faz os livros circularem – leitores/as, clubes de leituras, perfis nas redes sociais de influência, booktubers, etc. -, os títulos se tornarão ociosos, como acontece com uma grande parcela dos livros premiados desde o começo do prêmio. Uma literatura que não entretém nem merece ser lida.

(*) Emanuela Siqueira é pesquisadora de estudos feministas na tradução, na literatura e no cinema. Também media o Leia Mulheres Curitiba desde 2015.