Começa com um abraço, durante o abraço, um poema, e de um poema, um filme inteiro.

“Quatro vezes no museu de Hiroshima.

Eu vi as pessoas andando, pensativas,

Por entre as fotografias, as reconstituições – por falta de outra coisa.

As fotografias, as fotografias, as reconstituições – por falta de outra coisa.

As explicações – por falta de outra coisa.

Quatro vezes no museu de Hiroshima.

Eu me lembro das pessoas.

Eu me lembro de mim mesma, perdida em pensamentos,

E dos ferros, dos ferros torcidos, vulneráveis como a carne humana.

(…)

– Você não viu nada em Hiroshima. Nada.”

Hiroshima mon amour é um filme francês de 1959, estreia do hoje mestre Alain Resnais. Originalmente um documentário sobre o ataque nuclear americano de 1945, transformou-se em ficção com o roteiro de Marguerite Duras, resultando num dos mais belos filmes-poesia já realizados e considerado um dos precursores da nouvelle vague.

Contudo, o que me fez chegar a Hiroshima… foi um filme de mais de cinquenta anos adiante, também francês, mas dirigido por um austríaco: Amour, de Michael Haneke.

Dizem que “a rose is a rose is a rose is a rose”, mas acredito que algumas vezes a rose is not just a rose e um filme não é só um filme. Às vezes um filme desestrutura, tira-nos do eixo, bagunça nossa cabeça e até, por que não, muda nossa vida. Poderia citar alguns filmes que fizeram isso comigo, mas hoje me atenho apenas à experiência mais recente e digo que, para mim, Amour não é só uma rosa.

Acompanhar esse filme me foi traumatizante no melhor sentido da palavra (se é que nela há algum bom sentido). Passado o trauma, restou o encantamento com a precisa interpretação de Emmanuelle, que vai da velhice vigorosa às portas da morte em pouco mais de duas horas de projeção, e cujos gemidos e balbucios continuam reverberam  longo tempo após finda a sessão.

Forcei-me a re-assistir Amour, mesmo o baque tendo sido forte, na tola tentativa de apreender algo daquela intensidade que é Riva em cena e apreciar novamente cada palavra pronunciada em seu belo francês, admirar cada detalhe de sua moribunda e sentir a dor, o amor, e morrer de amour por essa atriz espetacular.

Madame Riva nasceu Paulette Germaine Riva em 1927, em Cheniménil, região de Vosges, nordeste da França, mais próxima às fronteiras da Suíça e Alemanha do que da capital Paris. Foi costureira até partir à cidade luz, por volta dos 20 anos, para tentar a carreira de atriz e despontar mundialmente aos 32 anos com o filme de Resnais.

Hiroshima mon amour 3

Hiroshima mon amour acompanha o fugaz romance de um casal sem nome, no curto período em que ela, uma atriz francesa, estará na cidade para a gravação de um filme. Ambos casados, o caso tórrido entre o japonês (Eiji Okada) e a ocidental vai do carnal ao metafísico, da cama do hotel às ruas de Hiroshima e se sustenta pela completa sincronia entre os protagonistas e a delicadeza do diretor.

A câmera de Resnais passeia pela inesquecível história daquela cidade, mas se embebeda mesmo é com as peles indivisíveis dos personagens abraçados e com as expressões honestas de Riva, em atuação com poucas falas, repetidas em ritmo e momentos precisos. Os quinze minutos iniciais dessa obra são uma simbiose incomparável, preciosa, onde Cinema e poesia se fundem numa sutileza mágica em versos-falas como “Dévore-moi, déforme-moi” (Devore-me, deforme-me).

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Insólita madrugada: os dois amantes num bar em Hiroshima. “Você não viu nada em Hiroshima. Nada.”

Riva, contudo, não se deixou levar pelo sucesso, nem mergulhou em seguidos trabalhos para manter-se no spotlight. Pelo contrário, recusou a maioria das propostas e manteve-se em busca de projetos que a tocassem, que fossem profundos e tivessem algo a mais. Com o tempo, como ela mesma disse em recente entrevista, foi sendo esquecida. Realizou esparsamente alguns filmes nas décadas seguintes, entre eles o primeiro filme da trilogia das cores de Kieslowiski, A Liberdade é Azul (1993), como a mãe de Juliette Binoche; mas se dedicou principalmente ao teatro e por opção nunca se casou ou teve filhos.

Em 2009, nas comemorações dos cinquenta anos de Hiroshima mon amour, divulgou as fotos que havia tirado na cidade durante as gravações, gerando uma exposição que fora exibida no Japão. Além disso, também é poeta com algumas obras publicadas.

Os anos, os longos anos, os brutos anos se passaram e a sexy atriz de Hiroshima… tornou-se uma bela senhora, que sustenta firmemente as inexoráveis marcas do tempo em sua face ainda encantadora. Aos 85 anos, interessou-se pelo projeto de Michael Haneke, dispôs-se a fazer teste de elenco e uma cena bastou para que todos soubessem que a Anne de Haneke sempre foi Emmanuelle.

Dois meses de filmagens, ao lado do veterano e combalido Jean-Louis Trintignant, para criar uma obra prima moderna, para escrever mais um filme-poesia na história do Cinema.

Haneke não resistiu à honra de contar com Riva em seu elenco (e quem resistiria?) e vendo Hiroshima… e Amour em sequência, é impossível não perceber as referências ao clássico dos anos 50 presentes nesse clássico contemporâneo, com destaque à cena do pôster, em que Georges toca a face de Anne com ambas as mãos, uma releitura de cena muito semelhante do filme de Resnais.

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A mão no rosto now and then. Emmanuelle: la même chose.

Indicada a todos os grandes prêmios de atuação do ano, vencedora de alguns deles, o que também não mudou com o passar do tempo foi a racionalidade diante do sucesso: lhe agrada o interesse por ela e pelo filme, mas sempre que pode, revela-se ansiosa  para voltar à sua vida pacata, vivida no mesmo apartamento parisiense há mais de cinquenta anos – e há quatorze anos sozinha, desde a morte do último companheiro.

Aos 86 anos – completados no dia da cerimônia dos 85° Academy Awards –, Emmanuelle mantém erguido o bastão da dignidade, encantando pelo não tradicionalismo e pela postura autossuficiente e poderosa que só as francesas conseguem ter. Inegavelmente uma artista, que mesmo com seus poucos filmes não será esquecida, pois sua carreira foi pontual, sucinta até mesmo em falas, porém certeira. Como epíteto de seu trabalho e de sua vida se manterá a frase de sua Anne, em Amour:

É boa a vida, a longa vida.