A Geração Beat ficou conhecida por diversos motivos: por produzir livros até hoje tidos como clássicos, por ter sido representada por personalidades que inspiraram os mais loucos e subversivos sonhos em jovens e adultos do mundo todo; por terem vivido de uma forma radicalmente diferente do que a maioria das pessoas de sua época; por questionar os valores predominantes na sociedade da época etc.

Dessa geração tão famosa de escritores o nome mais icônico e conhecido é o de Jack Kerouac, autor de diversos clássicos que figuram em listas de “Melhores leituras” ou “Livros para ler antes de morrer”, e cujo estilo de vida e obras literárias influenciaram muito o pensamento das gerações posteriores.

Uma dessas obras é Anjos da desolação, publicada originalmente em 1965, oito anos após o tão falado On the road. É difícil discernir onde começa e onde acaba a auto-biografia e a prosa espontânea de Kerouac, já que seus romances tem muito de auto-biográficos e basearam-se de maneira fundamental nas viagens, aventuras, desventuras, idas e vindas de Kerouac pelo mundo. Os personagens são alter-egos de outros eméritos “membros” da Geração Beat e de outros escritores da época.

A experiência que deu mais diretamente a origem a esse romance é o período em que Kerouac trabalhou como vigia de incêndios em Desolation Peak, em Washington, no ano de 1956. Na verdade a narração dessa experiência ocupa somente uma parte do livro, sendo que o restante se ocupa das viagens e a vida desregrada, drogada e mochileira de Jack e dos outros jovens “beats”.

Confesso que as viagens narradas são interessantíssimas: a descrição dos personagens, as drogas, a liberdade sexual, as bebidas, a crítica a busca desenfreada e ilusória pelo dinheiro, aliadas a constatação de que a vida viandante dos “beats” é material para gerações de escritores; mas o que me cativou mesmo foi o período de retiro e meditação que Jack Duluoz (Kerouac) passou no Desolation Peak.

A uma primeira vista parece que Duluoz se assemelha a Jack Torrance, de O iluminado, que busca no isolamento do Overlook Hotel a paz que precisa para sua criação literária, mas a experiência que Duluoz passa, embora não tão sobrenatural quanto aquela, é transcendental e angustiante ao ponto de, em alguns capítulos, beirar a loucura.

O Vazio que Duluoz sente encarando as montanhas e a necessidade premente que ele tem de registrar cada detalhe que lhe ocorre nesse período mostram como os longos dias de provação no topo do Desolation Peak foram quase um Purgatório. Jack viveu na pele o extremo da solidão, encontrando na simplicidade e pequenez dos mais ínfimos eventos (ruídos de ratos na sua cabana, balançar das árvores, esquilos pegando nozes, pilhas de suprimentos diminuindo etc.) o refúgio para a situação adversa em que estava.

As conversas dos outros guardas pelo rádio era uma espécie de evento diário que ele apreciava, longínquo, participando raramente. A prosa espontânea de Kerouac nesse trecho é a corda bamba em que o romance oscila, pois se o registro de todo e qualquer pensamento, visão ou fato (por mais banal ou insignificante que seja) praticamente truncam a leitura;  por outro esse é um recurso genial, pois nos permite palmilhar toda a jornada introspectiva de Duluoz e de Kerouac (e da Geração Beat).

Há um capítulo em que, no marasmo e tédio do topo do Desolation Peak, Kerouac parece simplesmente bater as teclas de sua inseparável máquina de escrever para registrar pensamentos, ao passo que o seguimos em uma livre associação aloucada que, dependendo de como você encarar, pode ser desnecessária ou brilhante.

A parte que se sucede a descida de Jack de Desolation Peak é ótima também: ver como Jack não parava em lugar nenhum, sempre em movimento, gastando solas de sapatos e erguendo seus polegares na esperança de uma carona, juntando-se e separando-se de seus amigos, passando pelos Estados Unidos, México, Londres, Paris, Tanger e por aí vai; experimentando drogas e bebidas; dormindo ao relento; conhecendo e relacionando-se com mulheres; escrevendo; presenciando as mais diferentes realidades; citando os mais diversos nomes da Literatura; e mostrando como estava disposto e crente de que sua trajetória não passaria em branco etc. é simplesmente estupendo. A galera da Geração Beat realmente viveu como pouquíssimos tem a coragem de viver.

Porém, a desolação de Desolation Peak (com o perdão dessa repetição, coisa com que Kerouac certamente não se importaria nem um pouco) é para mim, de longe, a melhor parte do livro. O isolamento voluntário de Kerouac (Duluoz, como eu disse: é difícil e talvez errôneo delimitar entre um e outro) provavelmente o afetou de forma determinante, já que ele escolheu o nome da montanha para figurar no título de seu livro e traçar um panorama sobre uma geração motivo de tanta controvérsia, a Geração Beat.