Não foram poucas as ditaduras que assolaram a América Latina no século XX. A profusão de governos ditatoriais, personificados em uma figura, o ditador, que controlavam a imprensa, os aparelhos de poder e a fiscalização férrea da sociedade em seus mais diversos recônditos possui envergadura suficiente para ser considerado um “fenômeno histórico” de primeira importância. Entre os exemplos de tais governos, poderíamos citar Augusto Pinochet no Chile, Anastasio Somoza na Nicarágua, Rafael Leônidas Trujillo na República Dominicana, Jorge Rafael Videla na Argentina, René Barrientos Ortuño na Bolívia, Alfredo Stroessner no Paraguai, Gustavo Rojas Pinilla na Colômbia entre outros.

Essa época foi marcada também por pelo boom da literatura latino-americana – uma confluência não aleatória, diga-se de passagem. A conturbada era pela qual passava a América Latina possuía “condições favoráveis” para que os brios e os clamores de justiças brotassem com a mesma pujança dos vários pomares que cultivavam as multinacionais que nesse território se instalavam. São dessa época – o momento central da literatura latino-americana – nomes como Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Octavio Paz, Pablo Neruda, Carlos Fuentes, Alejo Carpentier, Augusto Roa Bastos, Júlio Cortázar entre diversos outros, os quais entraram, pela qualidade e originalidade de seus escritos, para a galeria de clássicos internacionais.

É nessa conjunção entre ficção e história que se insere O outono do patriarca, romance de Gabriel García Márquez publicado em 1975. O livro conta a história de um ditador sem nome, em um país fictício, cuja única informação mais precisa de que o leitor goza é que ele fica no mar das Caraíbas. A vida toda dele se passa como que numa trânsito constante entre a realidade material e as fantasias oníricas. Embora seja possível demarcar uma e outra, a criação fantástica tem sua completude justamente nesse diálogo, uma das marcas típicas do realismo mágico.

O outono do patriarca possui como protagonista um ser humano, com anseios, medos, vontades, superstições, libido e conflitos internos; não se trata de uma construção maniqueísta, o ditador não é o puro mal, seus atos o conduzem para atitudes questionáveis e a conjuntura de poder em que ele se encontra o faz tomar algumas decisões em detrimento de outras. Ao contar a história desse ditador sem nome, Gabriel García Márquez concretizava a humanização de uma figura que muitas vezes procura-se ter como embaixador das trevas na face da Terra, como alguém cuja perversidade somente se iguala a de um demônio.

Isso, no entanto, não torna o livro um esforço de mostrar o lado bom do ditador, nem se quer que o livro humanize o ditador com vistas a mitigar suas arbitrariedades e o caráter cruel de muitas de suas resoluções. O que García Márquez leva a cabo em O outono do patriarca é uma história ao gosto do realismo mágico, com uma porção de eventos insólitos, que constituem, pela sua atuação com relação aos personagens, um recurso narrativo muitíssimo rico para revelar nuances da história e da realidade latino-americana.

O próprio autor definiu o livro como um “poema sobre a solidão do poder”, e ele explora esse sentimento ao longo do livro através da paranóia em que vive o ditador sem nome em meio ao nababesco luxo de seu palácio contrastando com a miséria e simplicidade das casas em seu redor. Nesse palácio é que ele dorme em um quarto separado, hermeticamente trancado, onde fica tecendo teorias da conspiração contra seu governo e sofrendo com a hérnia que ataca seu testículo. Mostrando tais facetas do ditador, o autor explora sob diferente ponto de vista a existência dele, como se constituía sua vida palaciana e como, na sua humanidade torta, ele assumiu seu caráter cruel e desumano pela consequência férrea de suas decisões.

O ditador usa e abusa de seu poder, criando feriados particulares quando bem entende, tentando canonizar a mãe, dando condecorações militares a seu bel prazer, jogando dominó nos finais de tarde com ditadores exilados e abusando das empregadas da casa. Ele altera a história e os fatos para que o tornem lendário, mítico e misterioso, uma figura que embora pouco apareça, paira sobre tudo e todos como uma entidade que tudo vê e em tudo está presente.

O poder em O outono do patriarca é uma questão banhada em uma espessa personalidade embora se estenda por sobre domínios não-particulares. Vive-se a decisão do ditador como um capricho pessoal, como se fosse um comando de ordem estritamente pessoal, de motivação essencialmente particular, mas descobre-se, com a efetivação do comando, que a decisão se estende por todos os domínios circunscritos, se espraiando nos rincões mais distantes da sede do governo, não raro com consequências macabras.

A obra tem seis capítulos, cujos inícios são os únicos seis parágrafos que o livro tem, sendo o resto texto maciço, que ocupa a página inteira, sem travessões nem separações entre falas, narração, descrição, enumeração de itens e outros sinais gráficos de pontuação. Márquez se vale da pontuação e das regras da assim chamada “norma culta” de uma maneira bastante peculiar, dando ao romance um brilho especial.

Apesar de não ter a pontuação convencional, o leitor não fica perdido naquele fluxo ininterrupto de texto: o reconhecimento das pausas, dos hiatos, das ênfases, dos pensamentos internos e as falas externas dos personagens são todas de conhecimento instintivo, a leitura automaticamente preenche essas lacunas.

García Márquez conseguiu explorar o cotidiano de um ditador usando toda a gama de informações que tinha sobre as ditaduras na América Latina, e conseguiu transpor essa realidade conflituosa que o cercava em um personagem que, justamente por não ter nome, podia se adequar aos diversos nomes que pontilhavam no quadro das ditaduras latino-americanas. O patriarca sem nome é um avatar dos diversos ditadores que exercerem seus truculentos poderes no centro e no sul do continente americano, sendo o caráter pessoal com que se reveste a poder do ditador-protagonista uma herança do tempo dos caudilhos e dos patriarcas conservadores, não sendo, por conta disso, uma afirmação de que o governo possua esse caráter estritamente individual.

Assim como em Cem anos de solidão García Márquez fez de Macondo um arquétipo de vila ou cidadezinha latino-americana, que passa pelas transformações e contendas históricas pelas quais passou a própria América Latina, em O outono do patriarca ele cria o micro-cosmo e a micro-trama envolvendo o ditador para dar visibilidade a todo um universo que se construiu em torno dessas figuras ditatoriais, procurando desanuviar o caráter extra-humano com o qual elas parecem, às vezes, se revestir.

O autor consegue unir a realidade histórica e a ficção literária em uma trama que oscila entre um realismo enxuto e uma verve fantástica, que torna os elementos da realidade em emblemas fantásticos e em primorosas focos descritivos, os quais reavivam o “caudal de mitologia”, como disse Alejo Carpentier, ainda existente na América Latina.

O poder que os ditadores latino-americanos tiveram nos governos instauradas a soldo norte-americano transcende na fantasia da obra, dando ao patriarca o estatuto de mito, de ser acima da mortalidade, cuja magnificência é resultado de poder e truculência e não de aceitação ou reconhecimento de todos, embora, Maquiavel já dissesse que o Príncipe não precisa ser amado, ser temido basta.